God Country, 2018.

Tenho lido as publicações de Donny Cates de forma meio atordoada. Acho que a primeira coisa que li foi Buzzkill (diversão demente), seguido da ótima temporada de Venom que ele comandou, daí Crossover tem sido uma das melhores hqs dos últimos anos e eu decidi que porra, esse bróder tem uma manha que não sei direito dizer o que é, uma facilidade em trabalhar temas complexos em linguagem bruta e sensível que se assemelha à Jason Aaron (pra ficar num exemplo contemporâneo, ou Morrisson para comparar com um dos mestres). Fui lendo outras coisas dele, como a excelente The Ghost Fleet (uma HQ de ação deliciosamente pré-adolescente das ideia) e finalmente cheguei no debut na Image: God Country. Que pancada. A história se desenrola feito uma canção épica de metal atmosférico, ora abrindo espaço para respirar, ora descendo a porrada sem limites. A cadência com que Cates desenvolve a sua história é quase anime/mangá em sua essência: ele trabalha crescendos inevitáveis sem deixar-se perder em uma cascata infindável de momentos, como muitos autores que trabalham os mesmos temas fazem. Cates vai de A até B de forma direta e quase simplória, entregando o que o povo quer. São os três acordes do punk, o dedilhado do black metal, a bateria do death. Coisas que funcionam porque são simples e possuem uma intenção clara. A beleza está em ser o que se parece.

Pílulas Azuis AKA Pilules Bleues, 2001.

Não sei bem como essa HQ veio parar na minha coleção, tampouco sei dizer porque comecei a lê-la; o nome do autor não me desperta nada e se alguém me perguntasse sobre o que era, meu melhor palpite seria algo com “talvez seja sobre viagra ou prozac?”. O bom de ser ignorante é que entrei nessa leitura apenas querendo ver qual é, mas o estilo de traços grossos e expressivos do suiço Frederik Peeters prendeu a minha atenção (aqueles olhos imenso de Cati, que inicialmente parecem querer assustar) e a história de desenrolou sem cerimônias, sobre um casal que se apaixona mas ela tem HIV. A HQ possui um típico senso de humor europeu da virada do século, autoconsciente, singelo mas pedante ao mesmo tempo e autobiográfico sem querer ser (mas tornando a autobiografia um dos temas da obra mesmo assim). De vez em quando é bom remexer a própria coleção de mídia e descobrir coisas como essa.

All-Rounder Meguru.

Um dos primeiros mangás que li foi Eden, do Hiroki Endo. Publicado pela JBC no Brasil, lembro que um amigo da escola comprou a primeira edição e ao folhear eu sabia que tinha que ler/acompanhar aquilo (sem contar que era a chance de entrar em uma publicação bem no começo, pois a maioria dos mangás na banca já estavam bem adiantados e ao tentar entrar em algum desses títulos eu ficava mais confuso do que empolgado). Por anos durante o ensino médio, Eden foi minha companhia mensal, até que meio que pararam de publicar (demorei anos a terminar a leitura, já depois da faculdade). Desde então, acho que já reli umas três vezes a obra toda. Virou um mangá essencial pra mim. Um daqueles lances que tu sabes que não é O Melhor De Todos Os Tempos, mas é importante pra ti. Muito dos meus gostos de sci-fi, mangá e anime, foi moldado por Eden. Quando comecei a ler All-Rounder Meguru confesso que nem notei o nome do Hiroki Endo ali, mas após alguns capítulos, o senso de humor, o estilo gráfico e o nerdismo detalhista pareceu muito familiar. Porra, é do Hiroki Endo! Li o mangá todo em uns dias, viciado no estilo “manual de como lutar MMA” que Endo aplica nos capítulos (aprendi fundamentos importantes de grappling durante a leitura, na moral). Os detalhes de como funciona uma carreira amadora de MMA no Japão são excelentes, explorando além disso temas como aspirações iniciais da vida adulta, amizades versus tempo, limitações pessoais e o significado de ser “forte” – que varia incrivelmente de pessoa pra pessoa, mesmo dentro de um microcosmo como lutas amadoras de MMA. As cenas de luta são cinéticas e bem calibradas, pontuando o mangá sem entrar numas de uma luta durar trezentas páginas. Conforme o final vai se anunciando, os personagens começam a encontrar definições próprias para os temas levantados. Feliz pela leitura, senti falta de tudo quando All-Rounder Meguru terminou. Assim como me senti quando terminei Eden pela primeira vez. Que privilégio, ter momentos distintos da minha vida pontuados pela arte de Hiroki Endo.

Cachalote, 2010.

Quase doze anos após seu lançamento, terminei de ler Cachalote. Essa hq sempre esteve perto de mim. Acho que cheguei a comprá-la umas duas ou três vezes (não lembro mais se pra mim, ou pra alguém). O lançamento dela na Mercearia foi num dia em que passei ali na frente e reparei muvuca. Como um filme que se tem uma cópia física em casa que nunca terminei de assistir, Cachalote não me perseguia, mas estava sempre ali. Eu mesmo esquecia dela e o tempo passava, lia uns pedaços e largava por algum motivo (vida). Dia desses, conversando sobre artes marciais com um cliente, ele me contava sobre sua segunda luta amadora de kickboxe enquanto eu contava que estava me preparando para a minha primeira competição de jiu-jitsu, e ele me disse que a melhor parte de competir, pra ele, é que quando a luta começa, tudo torna-se brutalmente simples: apenas marrete o oponente. Um momento só teu. Cachalote é, de certa forma, centrada em vários momentos assim. Uma coleção de fragmentos que parecem não conversar entre si, mas que carregam tudo que importa nesse lance de estar vivo. Valeu Galera, valeu Coutinho.

Loose Ends.

Nas notas finais da edição de Loose Ends que li, o roteirista Jason Latour conta que essa HQ quase matou os seus criadores. Por uma década, eles tentaram fazer algo que muitos consideravam equivocado, impossível ou simplesmente errado. Ainda bem que essa luta foi vencida pelos criadores, pois Loose Ends preenche um lugar especial nas HQs modernas. A composição de páginas, o ritmo fragmentado e constante, as cores que explodem sem perdão. É um trabalho minucioso, impressionante e essencial em seu próprio mérito. Em alguns momentos, fica a impressão “nem sabia que dava pra fazer hq assim”. Sinal de que estás lendo algo que possui a sua própria verdade.

A Drifting Life.

Um mangá semi-autobiográfico de quase novecentas páginas. Comecei a ler A Drifting Life por pura curiosidade. Não demorou muito para ver que tinha algo mais ali (por pura ignorância minha, não sabia nada sobre o autor, um influente contemporâneo de Tezuka). A história de Yoshihiro Tatsumi é a de um artista que começa ainda adolescente, desenhando mangá em um Japão pós-guerra. Tatsumi começa a criar pois percebe que: pode e consegue. Um hobby de estudante do ensino médio, que vive em um país devastado. É algo que inicialmente serve para lhe render algum trocado e algo para fazer. Até começar a virar algo que pode lhe sustentar. A partir do momento em que Tatsumi decide não ir para a faculdade e investir em sua carreira de autor, o livro começa a expandir, tratando sobre o ato de criar. Mesmo que as condições melhorem, ainda é preciso sentar e fazer o que precisa ser feito. Não é porque ele consegue o que quer (ir trabalhar em Tóquio) que seu trabalho melhora. Não é porque conhece Tezuka em pessoa, que conseguirá fazer um trabalho naquele nível. Quando tudo dá errado para Tatsumi, o que lhe resta é o som da cidade entrando pela sua janela, os cinemas que ele incessantemente frequenta e suas páginas de mangá a criar. Há muito em A Drifting Life que chama atenção, e, mesmo que eu não conheça nada de mangá dessa época (maioria do que li começa na década de 90), consegui perceber a influência que Tatsumi teve. Acho que sem autores como ele, não haveriam os mangá que cresci lendo.

2021: EVERYBODY HAD A HARD YEAR

(hqs)

The Many Deaths of Laila Starr

  • memento mori. o tipo de coisa que o cara precisa de vez em quando.

The Nice House On The Lake

  • como fazer o fim do mundo.

Restless

  • mestres em atividade. um dos privilégios de se estar aqui.

That Texas Blood

  • assim se nasce uma lenda.

Crossover

  • pequenos prazeres de ser nerdola.

Red Room

  • incansável Piskor. obrigado por tudo.

Ice Cream Man

  • experimentação constante e inclemente.

A Righteous Thirst For Vengeance

  • e de repente tudo faz sentido.

Fear Case

  • as perguntas que importam.

Monsters

  • toma aí, disse o mestre. te vira.

The Department of Truth

  • é como poder ver algo que está logo ali, pronto pra ser desvendado. uma baita série.

The Nice House on the Lake, #01-06.

Um Blockbuster com B maiúsculo, que quer ser um blockbuster e possui todos os elementos no lugar certo. Uma belezinha de leitura, com aquele visual de HQs indie da década 00, mas atualizado, certeiro, refinado. As cores de Jordie não parecem encontrar limites em cima da arte de Bueno. E o roteiro de Tynion é deliciosamente obtuso quando quer. Acho que a última vez que me senti assim lendo uma HQ foi com aquela época do Scott Snyder e o Greg Capullo fazendo o Batman. Tu sabes que tens em mãos algo grande, pretensioso e bonito. Como todo blockbuster deve ser.

The Many Deaths Of Laila Starr, #01-05.

Um esculacho. Difícil ser original em HQs desse jeito. Mas essa consegue. Porra, tem uma edição inteira que é narrada por um cigarro. Um abraço em forma de história em quadrinhos. Arte delirantemente linda, com uma urgência que não te esgota. Ser jovem, adulto e envelhecer. Tudo ao mesmo tempo agora.

Desolation, 2021.

Uma surpresa de leitura. Na ressaca de um término de relacionamento, o protagonista resolve se meter numa viagem de alguns meses até um arquipélago na Antártica. Normal. O que se desenrola é ora melancólico, ora engraçado. Alguns temas são urgentes, outros nem tanto. A sensação de que não existe mais nada intocado nesse nosso planeta.

A Righteous Thirst For Vengeance, #01-02.

Faz uns anos que Rick Remender escreve Deadly Class, uma baita série, daquelas que me fazem guardar umas edições pra ter uma boa hora de leitura quando for parar pra ler. Ao se juntar com André Lima Araújo, já dava pra sacar que viria coisa boa. E A Righteous Thirst For Vengeance entrega. Arte impossivelmente cinematográfica, roteiro econômico e fluído, que no final deixa exatamente a mesma sensação que Deadly Class sempre deixou: bem que isso aqui poderia ter mais umas cem páginas.

That Texas Blood, #01-10.

Logo na primeira edição de That Texas Blood tu sabes que algo interessante está para acontecer nessa HQ. A arte minimalista, os diálogos de cadência impossível, as dores de um canto do Texas esquecido pelo resto do país. Acho que em alguma das colunas no final das edições, o roteirista Chris Condon comenta que inicialmente That Texas Blood era para ser um roteiro de filme. Talvez tivesse funcionado. Mas prefiro assim em HQ, pois o espaço de tempo que se precisa para ler, observar e pensar é mais subjetivo. Edição após edição, algumas coisas fazem mais sentido que outras, alguns personagens completam-se sem muito esforço. Alguns quadros ficam presos na mente.

Reckless: Destroy All Monsters, 2021.

No final desse livro de Reckless, Brubaker escreve no Afterword sobre assistir Diner quando adolescente e sentir inveja dos personagens do filme, que se conhecem a vida toda, e como ele sabia que não teria o mesmo. Aí um cara como eu fica triste e quer abraçar o Brubaker, porque senti a mesma coisa. Não com Diner, mas com os livros de Reckless que ele, Sean e Jake vem soltando (resenhas aqui e aqui) de forma meio intensa no último ano. Dos três livros até agora, esse é o mais emocional. Explora a amizade e companheirismo dos dois personagens centrais, enquanto entrega uma clássica história de detetive do Brubaker. Uma lindeza de livro. Uma vida excelente.

Crossover, #01-08.

No universo de Promethea, que é capaz de ser o mesmo universo que o meu e o teu, histórias, mitos e lendas possuem sua própria dimensão, que pode ou não interseccionar com o nossa. O Imaterial, como é chamada, é um reino vasto, que vai além do que podemos vivenciar em carne e osso. E que vai além do que os mitos e lendas podem experimentar por si só. Talvez usando essa conexão, Danny Cates escreve Crossover como um enorme what if uma dessas dimensões, no caso a Imaterial, começasse a invadir a nossa dimensão. Para quem está lendo, é diversão pura. As edições passam voando, o universo da HQ é de uma nerdice contemporânea recheada até o talo de bons momentos, equilibrando meta com a boa e velha narrativa de herói. É meio que um trampo de um nerd para outros nerd, com tudo de bom e ruim que isso significa. No caso específico de Crossover, em uma era de super-exploração de IPs em todos os setores da indústria, há um romantismo inescapável, irresistível. Uma das melhores HQs do ano, certamente.

Regression, #01-15.

Continuando minhas andanças pela obras de Cullen Bunn, li Regression, uma treta reincarnatória que expande o universo de Bunn além do horror, com resultados esteticamente interessantes (mesmo que em alguns momentos meu cérebro não soubesse interpretar o movimento que Danny Luckert sugere em suas páginas – um baita artista em momentos não-dinâmicos, mas confuso em outros) e narrativa interessante até o seu “terceiro ato”. Não sei, talvez eu esteja mimado demais com os bons anos de Gideon Falls e minhas leituras recentes de Promethea, mas se tu vais montar um lance transcedental, monta um lance bem transcendental, broder. Boa leitura, mas somente para completistas da obra de Bunn.

Promethea, #01-11.

Meio que do nada, resolvi começar a (re)ler Promethea, que tenho na minha coleção há uns anos. A primeira vez que li algumas edições de Promethea foi na finada revista Marvel Max, que era publicada pela Panini no Brasil. Naquela época, me interessava mais Alias, Supreme Power e um monte de coisa “adulta” que a revista trazia. Lia Promethea mais por protocolo.

Mas agora… broder que porra é essa. Esculacho atrás do outro. Páginas duplas infinitas, roteiro totalmente sem freio do Moore, como se ele tivesse guardando tudo aquilo justamente para uma série como essa. J.H. Williams III desenhando como se não houvesse amanhã. Um 1999 que nunca existiu, mas que ao mesmo tempo continua futurista e retrô.

Tenho indo dormir tarde só por causa do gás que ler Promethea me deu. A página acima é da #5, e é só uma das diversas páginas duplas onde Moore e Williams resolvem viajar pesado – ou: como utilizar HQs para escrever sobre os diversos planos existenciais assim, de leve. As edições são deliciosamente ambiciosas, mas nunca inacessíveis. Há um equilíbrio (editorial talvez, autoimposto talvez) que mantém o cabecismo verborrágico de Moore sob controle. É como se ele tivesse operando umas marchas a menos do que poderia, mas por escolha.

Red Room, #01-03.

Ed Piskor é dos meus. Acho que ele é um dos poucos artistas que acompanho há anos no Instagram e ainda curto o que ele posta. Porque ele é nerdão. Daqueles que passa o tempo livre realmente jogando games 8-bit. E quando ele senta pra trampar, trampa mesmo. Escreve, ilustra, letra, diagrama, edita. Broder é um estúdio de arte inteiro sozinho. Red Room foi desenvolvida quase em tempo real, com páginas disponíveis no Patreon assim que Piskor as terminava (não paguei, mas valeu esperar pra ver Red Room no formato “final”). Misturando dark web, snuff, gore a galore e um doentio detalhismo gráfico, Piskor apresenta Red Room em histórias fechadas, mas que se conectam dentro do universo da HQ. É um trampo de nerd pra nerd, na sua forma mais brutal e intrincada. Coisa de quem cresceu assistindo Faces da Morte em VHS, que baixou um DIVX de Cannibal Holocaust, que lia revistas como Lôdo. Treta demais pra explicar, na real.

Maniac of New York, #01-05.

Enquanto os detentores dos direitos de Friday The 13th não se resolvem, posso colocar essa boa Maniac Of New York direto na linhagem de Voorhees: e se o monstro como esse surgisse em uma cidade incapaz de resolver problemas óbvios? Por quanto tempo ele seguiria destruindo tudo ao seu redor? Um brutal exercício slasher em forma de HQ.

Fear Case, #01-04.

Matt Kindt em boa forma, econômico e esquisito no grau. Tyler Jenkins em seu modo mais noir-gore possível. Fear Case desenrola como um filme amaldiçoado, deixando pouco espaço para especulações ou conspirações, apesar de ser calcado em justamente coisas do tipo. Algumas perguntas merecem nem ser contempladas.

Phantom On The Scan, #01-05.

Acho que comecei a ler as HQs do Cullen Bunn via Cold Spots ou The Empty Man, não lembro (mas recomendo ambas fortemente). De cara gostei do jeito que ele escreve horror e desde então tenho acompanhado o autor, de vez em quando lendo alguma coisa que ele publicou anos atrás; Phantom On The Scan é de 2021 e reúne Bunn com o artista Mark Torres, que fez Cold Spots. Cinco edições que passam voando, triturando referências e mostrando que Bunn e Torres operam no mesmo nível, seja no gore ou no minimalismo. O horror sci-fi nosso de cada dia, bem representado.

Reckless: Friend of The Devil, 2021.

Ano passado, ao escrever sobre o primeiro livro de Reckless, meio que deixei a entender que é um privilégio acompanhar o trabalho de Brubaker & Philips hoje em dia. Continuo pensando o mesmo, um ano depois. Nada como ter um livro como esse em mãos e viver esse pequeno momento. Esse segundo livro, Friend of The Devil, me fez lembrar da última vez que reassisti Once Upon a Time… in Hollywood. Há um sentimento de familiaridade, que inicialmente achei meio esquisito, pois não tenho lá muitos amores pelos 70s (ou 80s). Mas acho que são os personagens mesmo, que soam como um amigo, mesmo eles sendo de um período doido naquele pedaço dos Estados Unidos, nada a ver comigo ou de onde venho. Em breve sairá mais um livro dessa série, mais um espaço de tempo a ser compartilhado com esses personagens. Te desejo vida longa, Ethan Reckless.

Reckless, V01.

Hoje tudo ao nosso redor parece estar galopando, um pouco mais rápido do que de costume, em direção à ruína. Mas ao mesmo tempo a gente tem o Ed Brubaker e o Sean Phillips publicando uma HQ foda atrás da outra. Como é bom ser testemunha disso. Em 2020, a dupla soltou Reckless e Pulp, duas baitas histórias que seguem a linhagem “one-shot” das sensacionais Bad Weekend e My Heroes Have Always Been Junkies, de 2019. São HQs de 70 até umas 150 páginas, começam e terminam sem cerimônia, apenas deixando aquela sensação familiar. Meu tipo favorito de melancolia benevolente. Coisa de quem entende de forma singular o que tá fazendo, que experimenta com a manha infinita que um mestre tem. De vez em quando, a combinação da arte incansável de Philips com a narração irrepreensível do Brubaker me mostra que apesar dos pesares, está tudo bem. É só sentar e ler. Ser vem depois.

Ice Cream Man, #01-22.

Começou em 2018 como uma (ótima) história em quadrinhos de horror. Cada edição era uma história só, alguma treta bem bad vibe, figurando de uma forma ou de outra o Ice Cream Man. Pequenos contos de terror em forma de quadrinhos.

Começou a ficar cada vez mais esquisita ali pela #6. Na edição #9, entra um conto meio faroeste psicodélico. Estranho pra cacete, todavia irresistível de se ler. A partir daí, o tom da série fica cada vez mais distorcido, experimental. Ainda completamente assustador.

No número #13 os caras fazem uma história “palíndroma”, uma HQ que dá pra ler de frente pra trás se quiser. Um TENET, por assim dizer. É uma leitura muito da sua doida.

Na #18, vem uma dos maiores baques se uma história em quadrinhos pode te dar. Uma leitura triste e amedrontadora. Uma narração de perda de memória que dói bastante ler. Na #19, a edição inteira é diagramada como um manual de instruções (o “index” no final é matador). A #20 deforma histórias infantis.

A cada nova edição, não dá pra saber o que Ice Cream Man vai trazer. Pode ser um conto meio Black Mirror/Lynchano, ou, pode ser algo que vai te deixar bem zoado, de verdade. Em 2020 foi uma das leituras-doidera que mais apreciei ter em tempos de lockdown. Seja pela pura nerdice técnica e estética, ou seja porque não faço ideia do que vai acontecer assim que abro uma edição nova.

[hellblazer #42]

[change]

[change]

[shipwreck]

The Wake, #01-10.

Dividida em duas partes que se completam sem esforço algum, The Wake é uma história que engana, por parecer muito mais simples do que é. Não que isso seja a deixa para ser uma HQ cabeçuda, que quer explicar o sentido de tudo entre um painel e outro. Não há cabecismo verborrágico transcendental.

Há apenas esmerilhamento constante, em todas as edições. Seja na arte, seja no roteiro, seja na maldita premissa. Uma coisa ficou na minha cabeça após a leitura de The Wake, uma frase do Bill Hicks. It’s just a ride. Uma frase necessária e fundamental. Que merece virar mantra. The Wake seria um dos pontos altos dessa ride, até por pura ironia. Obrigado Scott Snyder e Sean Murphy.

Moon Knight, #01-06.

Marc Spector é um cara com sérios problemas. Na real mesmo, ele é pirado. A história conta que ele morreu uma vez e o deus egípicio Khonshu o ressuscitou. Desde então, ele assume de vez em quando a identidade de Moon Knight – ao mesmo tempo que ainda tem mais outras duas personalidades. Moon Knight protege os viajantes noturnos de NY. Se veste todo de branco, ora num terno three-piece, ora numa armadura e capa, sempre auxiliado por um drone no formato de meia lua e uma limousine auto-dirigível.

Com Warren Ellis no roteiro, a Marvel relançou o Moon Knight (mais um personagem que não tinha lido nada antes de pegar essas edições). Foram seis edições com roteiro do Ellis, arte de Declan Shalvey e cores de Jordie Bellaire (a partir da #7, Brian Wood e Greg Smallwood assumem o título). Edições com arte cristalina, roteiro elegante e cores que vão do sóbrio ao explosivo com maestria.

Fica evidente que são três artistas calejados e talentosos pra caralho, aplicando um conjunto de habilidades muito específicas em uma história em quadrinhos. Estas seis edições de Moon Knight são como o primeiro disco do Interpol: auto-consciente, soturno e perfeito. Seja na edição com o sniper, ou na edição em que Moon Knight entra em um sonho psicodélico, os três mantém um auto-controle e foco nervoso.

Cada edição possui um tom e uma direção firme, um ritmo que nunca se excede – mas também não cai na armadilha monótona do pseudo-minimalismo. O efeito que a leitura proporciona é algo que certamente só poderia existir em formato de história em quadrinhos (por mais babaca que seja dizer isso justamente sobre uma hq); Em tempos onde tudo vira filme, disco, livro ou série de TV, é quase inusitado encontrar uma obra que explora sem limites o potencial do meio para qual foi criada.

Hawkeye, #01-11.

Antes do Maior Filme De Super-Heróis De Todos Os Tempos que foi o primeiro Avengers, não tinha muita gente que ligava para Clint Barton. Muito menos sabiam que ele é o Hawkeye (ou Gavião Arqueiro). Um eterno personagem secundário, dentro de um universo lotado de personagens estelares. Talvez justamente essa indiferença tenha dado liberdade para Matt Fraction e David Aja iniciarem uma série em quadrinhos que não precisava responder nada.

Não vou fingir que sei muito sobre o personagem dentro dos quadrinhos porque realmente não sei, acho que ele sempre meio que esteve lá, entre os Vingadores, entre alguns arcos maiores e tudo mais. Sempre existiu Hawkeye, nunca liguei muito. Ele tinha (e ainda tem) uma função secundária no universo spandex da Marvel e parece que sempre a cumpriu bem. Só que nessa versão do seu título próprio, Hawkeye não parece sequer habitar o mesmo universo que os X-Men.

Ele é Clint, um cara de vida pessoal azarada, que usa jeans e converse e passa horas demais trocando curativos. Faz parte dos vingadores, é milionário por conta disso – mas não é superpoderoso. Tem problemas demais com ex-mulheres, ex-namoradas e sua parceira de profissão, Kate Bishop (que nos quadrinhos já foi Hawkeye e meio que ainda é – quadrinhos são confusos, cara). Clint tenta levar os seus dias da melhor forma que dá. Só acontece que ele é um super-herói. E por isso, às vezes é difícil ter um dia de descanso decente. Ou saber como fazer coisas mundanas como desfazer uma mudança.

Há um efeito parecido com o que Alias (do Bendis e Gaydos) proporcionava, uma imersão fundamental que só o meio é capaz. Há uma empatia que se constrói entre os painéis, a risada que surge naquele meio segundo após ler o balão. Quando se acha que ela vai ser um tipo de história em quadrinho, ela vira outro tipo – mas sem experimentar a esmo. Ou talvez seja um experimento constante. Difícil acompanhar às vezes.

Matt Fraction e David Aja estão criando uma das histórias mais crocantes de se ler de todos os tempos. A arte de Aja é nada menos do que incrível em alguns momentos, dando vida ao roteiro de Fraction em painéis econômicos e certeiros. A edição que é narrada pelo um cachorro do Clint é praticamente um manual de como se fazer uma história em quadrinhos, é material para se usar como referência para a vida toda. Tem dias que tudo que tu precisas é de uma hq como essa.