Godspeed You! Black Emperor, 15/10/24 – Paradiso, Amsterdam.

Se tu fechas os olhos em alguns momentos de um show do GY!BE, o transporte é imediato (para onde, depende mais de ti). A banda age como uma orquestra colossal, tecendo camadas incontáveis de barulhos, drones, cordas e dedilhados, que ocasionalmente são interrompidas ou guiadas por uma bateria que pesa toneladas. Há um arco, uma história a ser contada no palco. As projeções, vindas de quatro projetores analógicos de 16mm, são pouco sutis: começa-se com imagens bucólicas e calmas, passando por imagens de cidades infinitas vazias, daí para metrópoles guiadas por corporativismo, culminando em indústrias queimando e se engolindo. A banda recusa ser iluminada, tocam quase no escuro, deixando a tela imensa em cima deles ter toda a luz. Se estamos nas 23:59 dos nossos tempos, o GY!BE quer deixar claro que está bem ali conosco, como os produtores de um som que, em seus melhores momentos, parece ser o som de tudo colapsando em si mesmo. Testemunhamos e celebramos nossa própria queda, de uma forma irrepreensivelmente bela. Assim como no show anterior que vi, a sensação é de que temos que continuar caminhando. A única saída parece ser manter a ternura e alguma esperança no bolso. Por uma segunda vez pude experimentar essa banda e ter, por algumas horas, a certeza de que pelo menos não estou completamente sozinho.

Explosions In The Sky, 07/07 – Paradiso, Amsterdam.

Quando os sons iniciais de First Breath After Coma começaram a ecoar pelo Paradiso, entrei em um túnel mental, lembrando que um dia fui um moleque descobrindo os discos dessa banda – que sempre esteve presente na minha vida, ao que parece. Dos meus primeiros corações partidos, dores da adolescência, confusão da vida adulta de um cara latinoamericano. De tudo que EITS me ajudou, sendo trilha sonora (literalmente ou não). Lembrei da única parceira que tive que também ouvia a banda, da sua fender vermelha, dela sentada em um colchão em um apartamento no Ipiranga (talvez ela gostasse de saber que a banda inteira só toca fender também). O ressoar emocional dessa banda mudou, porque eu também mudei. As tretas de um jovem já passaram há muito. A conexão é diferente agora. Mas: chorando, realizei o sonho desse moleque de ver essa banda ao vivo, de estar presente, de estar no lugar certo para poder ouvir as melodias que tanto ecoaram nos meus falantes, fones de ouvido e em minha cabeça por décadas. No palco, caras velhos também, tocando com a maestria de quem está na estrada há 25 anos. Nada fora do lugar, nada estranho, só uma banda sendo o que é. Coisas que nunca achei que iria experimentar – e que sinto uma gratidão singular por ter conseguido. Quando The Only Moment We Were Alone começa a encerrar o show, sorriso toma conta da tristeza. Que longa vida, por mais breve que pareça. Que viagem.

Otoboke Beaver, 04/06 – Paradiso, Amsterdam.

Uma banda perfeita. Por uns meses fui viciado no primeiro disco do quarteto punk de Kyoto, anos atrás. Foi um daqueles discos que te renovam a paixão por um estilo musical, ou, por música em geral. Uma banda perfeita, sempre achei. Ao vivo: potente e pesada. Te deixam com um sorriso estamapado na cara. Soam grande, como era de se esperar. Incrivelmente afiadas, tanto que a vocalista usa os sons de inspirar como deixa para a banda descambar em rolos compressores de punk da mais crocante qualidade. Que maravilha que é ver a baterista Kaho Kiss tocar: sentada com ótima postura e sorrindo gentilmente, esmerilha o kit com precisão e fúria, sem parecer nem borrar a maquiagem ou bagunçar o cabelo. Uma mestre. Felizes por tocar em um Paradiso cheio, não deixaram ninguém escapar. Uma banda punk japonesa abrindo um mosh pit em Amsterdam é uma doidera de se ver em uma quinta-feira, mas se tem uma banda que sabe que consegue fazer isso, é a Otoboke Beaver.

Smashing Pumpkins + Interpol, 29/06 – Ahoy, Rotterdam.

Antes de entrar em Mayonaise, Billy disse here’s a song that we wrote in ’92. E quase me fez chorar, porque poucas canções soam assim, ao vivo. Um presente, de uma banda antiga, que viveu várias vidas em suas décadas de atividade. Tocaram por algumas horas, mandando mais de 20 músicas (em algum momento James Iha deixou escapar no microfone “just 9 songs more” – pode ser o melhor trampo do mundo, mas ainda é um trampo), entre covers de U2, brincadeiras com riffs de Lenny Kravitz e versões secas, mas muito poderosas, de seus hits. Se o Interpol, que fez um set competente de abertura, soava como um Mustang antigo, o Smashing Pumpkins soou como um navio de guerra aposentado, sem ver tretas há muito tempo mas ainda capaz de assustar quem quer que seja (teve um momento ali que o Chamberlin conseguia fazer a bateria dele mais pesada que muita banda de metal carcomida, uma doidera). Uma banda de uma rara estirpe, que não se vê ou ouve mais, dando uma noite de puro som e alguma fúria aqui e ali. Que jeito de terminar uma semana: indo sentar lá no fundo da arena, cantar umas músicas que cresci ouvindo, ver Billy e Iha se entrelaçarem ao tocar os solos de Rhinoceros (outro presente) e depois pegar a bike e pedalar de volta pra casa, curtindo a cidade, em seu mais puro crepúsculo de verão. Um dia perfeito.

Greg Foat + Moses Boyd, 25/06 – Vessel 11, Rotterdam.

Terça-feira quente no centro da cidade. Quente mais ainda no porão de um barco, onde o palco do Vessel 11 é. Conseguimos sentar ali do lado do Greg, podendo ver a pedaleira hammond que que usa como baixo, o rhodes todo cheio de cabos e o iphone que ele consultava, como quem lê notas, para saber como achar os sons que precisava para cada música no emaranhado de instrumentos que ele tocava. Moses Boyd na bateria, acompanhava Greg criando um balanço pesado e experimental que parecia inevitável quando os dois começavam a tocar juntos. Boyd transformou os sons leves de Greg em pancadas psicodélicas, com a manha de quem sabe o som que tem e como ele combina com outros. Teve um momento ali que Boyd tomou um gole da garrafa de água no seu pé, notou que a garrafa era de vidro e prontamente a colocou em cima da caixa e começou a tocá-la. Grooves de mestres para uma noite clara de verão. Obrigado Greg e Boyd.

Tool, 27/05 – Ziggo Dome, Amsterdam.

Nunca pensei que ia ver o Tool ao vivo. A banda me apareceu bem naqueles anos ideais da adolescência, em que o perigo começa a fazer sentido. Tu tás com tesão e nem sabe do que, aí ficava fácil começar por música. E o Tool entregou algo pra acompanhar isso: quatro discos perfeitos. Abriram minha cabeça pra todo um monte de coisas. A singularidade do Tool é semelhante ao do Radiohead pra mim. Não comparo muitas bandas e muitos sons a eles, porque nem tem como. E assim que tomaram o palco do sold out Ziggo Dome, mostraram porque são o que são. Uma pedrada, menos sensual do que lembrava, mas muito mais sisuda e definitiva. A banda sabe como e o que quer. Que banda. Quatro bróderes que tocam com a técnica de quem nem pensa mais nesse tipo de coisa, pois passaram dessa. Uma viagem no tempo pra eu me ver adolescente, querendo ser dark e querendo me sentir o tempo todo daquele jeito que os discos do Tool me faziam sentir. Tocaram muito mais dos discos recentes, dando apenas uma acenada pros dois primeiros. Todos nós envelhecemos, normal. O Tool de hoje em dia é menos liga torta, mas ainda fascinante. Por um espaço de tempo, lembrei de noites jogando Quake, lembrei daquela virada de século niilista, lembrei de uma vida toda que pareceu a única coisa que eu ia viver. Envelhecer é um privilégio, e ter podido pagar a pequena fortuna que foi para ver uma banda tão única quanto o Tool, é um privilégio importante. Um som que para sempre estará marcado nas minhas memórias, primeiro de adolescente, agora de velho. Excelente vida, baita sorte.

King Gizzard & The Lizard Wizard, 23/05 – AFAS Live, Amsterdam.

Esse show é o mais próximo que bróders do roquenrol vão chegar daquele momento do primeiro Dune em que os Sardaukar tão curtindo um throat singing antes de embarcar pra uma guerrinha. A banda é uma locomotiva sincera, afiada e muito divertida. Solo da gaita logo na primeira música, uns três vocalistas diferentes, centenas de solinho speed metal de guitarra. Muita cantoria sobre seres espaciais, doideras dimensionais e segredos biológicos ancestrais. Alguém da banda comentou que é surpreendente pra eles tocarem um show sold out dessa turnê que eles tão fazendo há uns anos já. Na verdade nem é: banda boa tem mesmo que ser prestigiada. Pra minha sorte, peguei esse show de um dos discos de metal deles e o show teve um setlist mais pesado, mais familiar pra mim. Mas mesmo nos momentos em que eu não reconhecia nada, ainda me diverti. De vez em quando o cara só precisa disso, um monte de barulho massa.

Tommy Guerrero, 28/03 – Bird, Rotterdam.

Enquanto Tommy mexia em um pequeno projetor, conectado a um celular velho, que jogava sobre o amplificador e um pouco sobre suas pernas imagens semelhantes ao que tu vês quando olhas pela janela de uma viagem de carro longa, pensei, que fita: deve fazer uns quinze anos que vi ele tocar em uma casa na Vila Madalena. E faz mais de vinte anos que ouço a música dele. Nesse show, o seu irmão, Tony Guerrero, abriu pra ele e contava entre uma música e outra que eles tocam juntos desde criança, que aquela era a primeira vez que ele tava viajando com o irmão e abrindo os shows dele. Logo depois, Tommy também comentou no final do seu show que algumas daquelas músicas tinham mais de 30 anos e outras ele ainda tava compondo e experimentando. Envelhecemos, bróder. Ou: tempo versus prática, paciência e trampo. Parece ter sido essa a temática da noite. A timeline dos Guerrero é bem diferente da minha. Mas que bom foi termos nos encontrados pela segunda vez.

Nils Frahm, 07/03 – Het Concertgebouw, Amsterdam.

Por mais de duas horas, Nils arrancou sons e melodias que iam de minimal à puro noise de uma coleção de 12 (ou 13?) teclados, sintetizadores modulares e uma glass harmonica (e um rhodes, e juno 60s etc). Uma experiência que me atravessou de vários jeitos. Ver alguém conjurar música assim foi um privilégio. Andar pelo Concertgebouw, um lugar lindo, construído por pessoas que há muito se foram e agora acessível a gente como eu, também foi impactante. Nils comentou que foi como tocar em uma igreja. Talvez, mas nunca me senti assim em uma. O som batia forte, mesmo em seus momentos mais delicados. Nils demonstrou uma disciplina afiada, mesmo quando não parecia que ia acontecer, fazia a montanha emaranhada de instrumentos conversarem entre si. Percebi que ouço a música dele há muito tempo, minha coleção de discos que lançou é bem grande até. Caminhamos juntos por muito tempo, e naquela noite de quinta em que tudo deu certo pra mim, nos cruzamos pela primeira vez.

Witching + Fange, 05/10 – Urban Spree, Berlin.

Podia jurar que já tinha ouvido Witching. Achei que lembrava, mas quando a banda começou a tocar, não registrou. Talvez ouvi outra banda de nome semelhante, tudo bem. Isso me aconteceu várias vezes durante essa visita à Berlin. Por algum motivo olhava para algo (um prédio, rua, loja, trem) e lembrava daquilo, mesmo sem nem saber o que é. Ou talvez eu sabia, mas só esqueci. Todavia, é bom conhecer uma banda nova pelo que tão tocando no palco, e o Witching é uma belezinha. Aquele metal clássico, que sabe ser sludge e deixa os vocais soltos (baitas vocais). Tudo que o cara precisa de vez em quando.

O Fange já é outro bicho. Outra história. Um ataque frontal. Um exercício em forma de barulho. Teve uma época que acho que no bandcamp deles tinha a frase “This is ignorant music for the Educated Man”, mas o tempo passou e acho que a gente tá mais ignorante do que esperava, ou talvez seja só a minha percepção. Aquele Fange do sludge dos infernos quase não apareceu nessa noite, o que veio foi um estridente, combativo, desgraçento e puro som industrial. Dois estrobos virados de frente pra plateia, aquela luz branca e prateada assaltando todo mundo. Fazia tempo que não passava por isso, um hard reset de algumas partes do teu cérebro. Com a banda te forçando até dar certo. Existindo apenas no momento, como canta a letra de Sang-Vinaigre.