Resurrection, 2022.

Fazia um tempo desde que vi um filme recente com esse tipo de ritmo. Thriller de horror pegado, ancorado na excelente Rebecca Hall, talvez num dos ápices das suas capacidades como atriz: entregando um universo próprio de desconforto, raiva, cansaço e antipatia benevolente em várias cenas. Só mais assombrado do que a performance de Hall, talvez seja ouvir (pela também excelente atuação de Tim Roth) palavras que soam incrivelmente similares à coisas que eu mesmo disse em relacionamentos em algum momento da minha vida, por mais doloroso que seja admitir isso. Horror puro e verdadeiro é se ver refletido em personagens nojentos. Certa vez li que amadurecer é olhar para si anos atrás e sentir vergonha e desgosto por si mesmo. Não sei o quanto isso é verdade, ou se serve de métrica para alguma coisa. De qualquer forma, o tempo passa e algumas coisas permanecem, aguardando calmamente o seu momento para se desenrolarem ou explodirem. Nesse meio tempo, muita coisa pode acontecer. Uma vida inteira pode se desenvolver. O difícil mesmo é escapar de si mesmo.

Prey, 2022.

Em algum momento de Prey me senti tipo esse gif do Jeff Goldbum. Não é complicado fazer um filme bom e divertido tipo esse, mesmo usando uma IP que permeia o imaginário popular por décadas. Corta pro básico: O Predador é um ser caçador que viaja o cosmos caçando troféus. Tempo é uma ilusão, então dá pra colocar ele na América do norte durante as primeiras décadas do genocídio colonial do continente. Coloca o predador caçando uns bichões tipo lobos, ursos brutos e tal, meio que se divertindo sozinho. E fatalmente ele cruza com uma das mais poderosas tribos nativas da região: os Comanche. Pronto, Predador versus Comanche. O resto é detalhe. Tu precisas de um cinegrafista que saiba usar a selva com esmero, atores confortáveis em seus papéis e claro, violência estética inclemente (com uma predileção por efeitos práticos, mesmo tendo que usar VFX em todos os animais – menos naquele cão muito parça da protagonista). Curti bastante que os Comanche quando falam inglês demonstram uma coolness quase impossível (que me fez lembrar de Scalped um pouco). Ótimo filme, que se junta à outros filmes diferentes que a franquia fez (Predators de 2010 é bem massa também). Essa fórmula de Prey serve pra qualquer IP de horror/ação que precise de um gás. Esperando com calma um Predador no Japão feudal, ou contra mercenários gregos de Alexandre.

The Black Phone, 2021.

Um filme acima da média para a Blumhouse, e abaixo da média para Scott Derrickson, que repete aqui a colaboração com Ethan Hawke (excelente como The Grabber, criando com pouco – quase nada – um personagem que imediatamente ganha espaço no imaginário de filmes de horror). Entrei nesse achando que seria algum horror de verdade, mas ganhei um thriller setentista baseado em um conto do Joe Hill que usa alguns clichês do pai Stephen King (semi-paranormalidade, bullies, jovens se metendo em merda) para contar uma história competente, mas que se distrai consigo mesma, seja nas atuações dureza do cast juvenil, seja na progressão tão linear da história que o interesse meio que some (acho que algumas cenas eu nem registrei direito o que tava acontecendo). Um Stranger Things mais adulto, ou um thriller de serial killer Disney. Hawke tentou (e quase consegue), mas além da máscara, não tem muito mais.

The Outfit, 2022.

Comecei esse filme sem saber muito sobre, imaginando que seria algum filme de máfia pós-guerra estiloso (“ah parece ser sobre um alfaite que trampa pra máfia, massa, vamo ae”). Quase acertei, mas não sabia que também se passa todo em um lugar só. O contraste constante de modos e jeito de falar de um britânico em Chicago acabou por sustentar o meu interesse durante o filme todo. Observar Mark Rylance trabalhando nesse filme é demais. Utiliza o pouco que tem com esmero e precisão, sustentando com cuidado o ritmo de cenas que quase (quase) perdem o gás quando o foco sai muito dele. A diferença que uma milhagem alta faz.

Everything Everywhere All at Once, 2022.

A doidera de existir. Não fiquei surpreso ao ver o nome dos irmão Russo nos créditos. É uma espécie de Avengers da A24: filtrando um conto meio Siddhartha acidental via comédias da década de 80, com maximalismo violento década de 00 e com questões de identidade típicas dos anos 10. Um filme que, fatalmente, só poderia existir nessa década pirada que estamos vivendo nesses anos 20. Na penúltima temporada de The Expanse, um dos personagens professa que a única escolha real que temos é ir ou ficar. No decorrer da vida, ir ou ficar é a decisão suprema, que se desmembra em infinitas decisões menores. Mas tudo começa ali, no segurar/soltar. O material de que a existência é feita está todo compreendido entre o ato de ficar ou ir. Surpreso, me vi soltando lágrimas com momentos de Everything Everywhere All at Once. Michelle Yeoh (eterna crush desde sei lá, Police Story 3, pelo menos), uma mestre em plena forma, encarna o filme de uma forma que a gravidade do seu trampo puxa todo o resto do elenco junto. Um filme esquisito, clichê e não muito inovador – mas mesmo assim forte pra caralho. Como a vida.

The Night House, 2020.

Luto como portal para alucinações, sonambulismo e uma vida solitária alienante. Os filmes do David Bruckner são excelentes construções de monstros de filme de horror, e nesse ele abusa de uma espécie de trompe-l’oeil digital para aos poucos nos apresentar uma presença maligna brutal. Mas há outras camadas de treta, sutis e sem muita resolução (a porta para “é tudo uma alucinação apenas” é aberta algumas vezes). Rebeca Hall está excelente como uma pessoa naturalmente antipática e irritante, dureza de simpatizar mas ao mesmo tempo interessante. Luto é um troço complicado.

Ku bei AKA The Sadness, 2021.

De zero à trezentos quilômetros por hora em alguns minutos. Um brutal espetáculo sadista de desgraceira tropical apocalíptica em pura forma gore. Um grand guignol vindo direto de Taiwan, que me dá aquela sensação massa de que há horror podre de alta qualidade a ser descoberto em vários países (tipo aquela sensação que o coreano Train To Busan deu, ou o japonês One Cut Of The Dead). Talvez seja o mais próximo que Crossed de Garth Ennis chegará a virar filme. Algumas cenas me fizeram dar aquela característica viradinha de cara, coisa que não fazia há muito. Ah, nada como ser fã de horror. Várias cenas são esteticamente lindas e repulsivas ao mesmo tempo, em uma espécie de balanço improvável entre técnica e desregramento grindcore.

The Batman, 2022.

Não estava tendo um dia muito bom. Viver em um inverno infinito tem seus momentos baixos. Quase cancelei o ingresso, só pra ficar na minha. Mas acabei indo, me empurrando para algumas horas de entretenimento multimilionário apenas pra ver o que sentia. Não estava preparado para um Batman que se sentia tão merda e tão solitário quanto eu. Talvez seja o primeiro filme do personagem que tem narração em off. Talvez seja o primeiro filme que nos apresenta o Batman Deprê tão comum nas HQs. Bruce está no seu segundo ano como vigilante, vivendo em uma noite infinita, entrando e saindo de foco quando pensa nas consequências do que faz, ouvindo Nirvana todo soturno na Bat Garagem (entendo). Dolorido, falando baixo, quase murmurando, deficiente em vitamina D e ainda levando umas porradas bem dadas. A vida de um bilionário vigilante é uma dureza. O filme é de uma estética inclemente, trazendo a Gotham gótica em todo o seu esplendor. É como se os filmes do Tim Burton tivessem cruzado com alguns do Scorsese. Batman ainda não se tornou um mito, caminha entre as pessoas como se nada tivesse acontecendo, dirige veículos arromba-ouvido, leva tiro no peito como se fosse essa a intenção. Metal pesado. O broder tá tentando reverter o fluxo da cachoeira na base do soco. Apesar da melancolia grudenta de Bruce, o filme todo se desdobra mais como uma ode à Gotham, uma cidade suja, cheia de obras abandonadas, passando por uma temporada de chuva que parece não querer terminar. As cenas que usam o anoitecer/amanhecer como pano de fundo são muito bonitas, assim como o som distinto dos passos do Batman em algumas cenas, ou a textura do couro que a Selina usa. Por momentos, esqueci completamente do Riddler e suas tretas. O filme sucede em ser um ataque sensorial, usando ruído, escuridão e silhuetas para se firmar. Não me senti tão melhor quando o filme acabou, mas gostei de ter ido.

Verdens Verste Menneske AKA The Worst Person in the World, 2021.

O trabalho do Joachim Trier sempre me chamou atenção, aliás, pesado pensar que Reprise é de 2006 (um século atrás). Onde estava quando assisti esse filme? Acho que ainda na faculdade em Belém. Experimentando a vida de uns nórdicos meio ricos em Oslo. The Worst Person in the World revisita temas dos seus primeiros filmes, mas sem pesar muito no intelectualismo. É um filme que se expande sozinho, demonstra uma vida própria, criado por alguém experiente. Cheio de atores interessantes e cenas lindas. A vida, mesmo em um dos cantos mais ricos e prósperos do mundo, ainda é a mesma coisa para todos nós. Mesmo que em alguns momentos o drama não seja muito além de um conjunto de escolhas bem aceitáveis. Renate Reinsve é possivelmente a maior paixão cinematográfica dos últimos tempos junto com Alana Haim e o filme é repleto de momentos que doem demais para quem está na mesma faixa etária dos personagens do filme. Mas assopra também: uma risada, um novo olhar, um novo dia. Ninguém sai ileso.

Nightmare Alley, 2021.

Um primeiro ato encantador, bonito até o osso. Um segundo ato meio naquelas e um terceiro ato que é completamente roubado por Cate Blanchett (como sempre deveria ser). O delírio cinematográfico que é esse filme é coisa que somente o Del Toro consegue fazer hoje me dia, aparentemente. Alguns cenários são intrincados, vindo direto de um passado que não sei se existiu dessa forma. Mas se existiu, que doidera absoluta. É um bom filme, mas fica algo faltando, por mais que sua beleza tente nos distrair.