Perfect Days, 2023.

Sempre quis uma vida simples. O que não necessariamente significa ter uma vida fácil. Mas às vezes, por um certo número de dias, talvez semanas e (se o universo sorrir) meses, as duas coisas se sobrepõem e eu tenho o privilégio de viver dias perfeitos que parecem sem fim, onde o simples e o fácil se entrelaçam e eu me vejo cantando Racionais na bicicleta ou cortando o cabelo do baixista de uma banda que admiro- ou tendo tempo o suficiente em uma sexta para assistir esse filme todo antes de ir dormir. Reconhecer o próprio privilégio é fundamental. Hirayama pratica a arte de notar, inspirar e deixar passar. Ele parece entender o privilégio do seu trabalho, rotina, cidade, casa e, finalmente, a vida inteira que leva. Tento fazer o mesmo. A solidão também é um privilégio, um benefício, um presente, como diz aquele poema. Há um custo, claro, pessoal e intransferível para cada um. Mas: que vida. Ele lá indo de bike por Tóquio pegar um livrinho, eu aqui de bike aqui em Rotterdam indo assistir um filme depois do trampo. A gente chora e sorri ao mesmo tempo, porque no final, é a mesma coisa. Ser testemunha da própria existência, e por consequência de todo mundo, é talvez a única coisa que realmente importa pra mim. Perfeição é o que tu quiseres que seja.

Furiosa: A Mad Max Saga, 2024.

Perdi o Fury Road nos cinemas, mas se tornou um dos meus filmes prediletos desse século bem normal que estamos vivendo. É um blockbuster perfeito, que na sua versão black and chrome torna-se um disco perfeito do Bolt Thrower (…for Victory, se tu queres). Difícil não pensar em Fury Road ao assistir esse Furiosa: é o mesmo cenário, vários personagens se repetem e alguma cenas são set-pieces catastróficas, com escala e ambição de quem conseguiu um bom financiamento. É tudo muito massa, mas aquela alucinação e doiderismo de Fury Road tão diferentes aqui, ou até mesmo ausentes. A batida é outra, alguns personagens novos são intrigantes, mas não ganham espaço, Dr Dementus é chato bagarai, nem faz sombra pro eterno Immortan Joe. Taylor-Joy é competente, mas nada mais. Fui com sede ao pote e bebi meio que o necessário, não rolou aquele chapamento contínuo e quase perfeito do filme anterior. Tudo bem, porque cada minuto passado na Wasteland hoje em dia, é um bom treinamento pro que há de vir.

Late Night with the Devil, 2023.

Infelizmente esse filme apareceu pra mim por conta da controvérsia sobre o uso de IA na produção de alguns lances (nem sei o quê) no filme, apesar de que eu teria dado uma assistida de qualquer forma, por conta do formato (o filme toca como a fita da gravação de um talk show que manda uma possessão ao vivo, claramente vou ver qual é). Sem entrar numas no uso dessas ferramentas, tou aqui pro terror, bróder. E o filme funciona como um bom segmento da série V/H/S – um pouco longo demais aqui e ali, mas competente em trazer a desgraceira e ritualismo para o primeiro plano. Entretanto, se nada funcionar muito, pelo menos aprendemos que Abraxas é negócio sério.

Civil War, 2024.

Um road movie apocalíptico que parece mais documental do pensei que seria. Me lembrou o Too Old To Die Young um pouco, aquela série inclemente do Refn. Me lembrou os melhores momentos da série The Purge, mas fatalmente me lembrou imagens que todos nós assistimos nos últimos anos: instituições sendo adornadas com pessoas portando rifles. O espelho que Civil War levante diante da plateia é distorcido, pouco claro de propósito. O desconforto desse filme é tremendo, que acaba por ser ineficaz. Não consegue ser distópico, ficcional ou fantasioso. Um filme resignado, que dá ao elenco (Wagner Moura finalmente em chamas, Jesse Plemons vazio) espaço. Mas para a audiência, te vira. Excelente.

Samsara, 2023.

Ser envelopado por esse filme foi um tremendo presente de aniversário. Lembro que quando era criança, não entendia por quê falavam tanto sobre o nome do diretor de um filme, porque pra mim, o ator era o mais importante né, não tem filme sem ele. E ele só precisa ir ali pra frente da câmera e falar umas coisas, atirar nuns caras, correr daqui pra lá. De certa forma isso era cinema pra mim, só pessoas fazendo algo que iriam fazer de qualquer forma, se a câmera tivesse aqui ou ali, não importava muito. Assistir filmes como Samsara me dá a mesma sensação que tinha quando não sabia como se fazia cinema. É algo que aparece na tela, sem direção, sem roteiro, estaria acontecendo de qualquer forma. Quando esse filme decide virar a luz e o som em tua direção e te guiar, não tem muito o que ser feito. Tudo que tinha para acontecer para tu chegares nesse ponto, aconteceu já.

The Zone Of Interest, 2023.

Quase parece um filme de ficção científica. Essa imagem de prédios e prédios trancados por um muro enorme que os mata aos poucos, e pessoas morando logo do outro lado de fora em uma normalidade áspera. O som desse filme te assombra, e, infelizmente, tenho que ser o cara que diz que esse vai ter que ser no cinema, em casa não vai bater do mesmo jeito. Minhas impressões iniciais não foram lá muito positivas, achei bom e tal. Mas, tal qual Under The Skin, continuei pensando nesse filme dias depois de assistir, lembrando algum detalhe, pensando em como me senti observando algo que, em um momento brilhante, me olhou de volta. Assombramento, cinismo, hipernormalidade. Um espelho que se abre em tua frente.

Leave the World Behind, 2023.

Acho que esse é o Don’t Look Up pra fãs de Mr. Robot. Um filme espinhento, com um roteiro armado pra incomodar, mas ao mesmo tempo espaçoso o suficiente para atiçar curiosidade que fatalmente vai te trair. Entendo quem não gostou. As metáforas visuais, narrativas ou tão rasas que quase não são metáforas – ou talvez nem eram pra ser – te atingem de todos os lados e em clássica maneira anti-hollywood (o filme vem de um livro, no final das contas) o crescendo não revela muito mais do que foi especulado e não te dá 45 minutos de pancadaria e tiroteio pra satisfazer a curiosidade. Esmail tem produzido coisas espetaculares como Homecoming desde que terminou Mr. Robot, e acho que esse filme é ele tentando atingir o mainstream (com ajuda dos… Obama) sem deixar de lado as particularidades que ele passou anos afiando em seus shows de TV (aliás esse filme tá dentro do universo de Mr. Robot, vê-se Evil Corp aqui e ali e há referências à algo que aconteceu em New Jersey). No final das contas, a lentidão serve apenas para criar mais desconforto, deixando o elenco fazer o que quiser com o roteiro (bom, meio mão pesada tipo Barbie, mas acho que a tônica desse ano em Hollywood foi essa) e deixando claro que é um filme feito pra ser divisivo e meio canalha. Tudo bem, ninguém é inocente aqui.

Kubi, 2023.

Moral do caralho é escrever um livro (um romance histórico) e depois adaptar em filme tu mesmo (um épico de guerra). Em Kubi, cabeças rolam com a mesma facilidade e intensidade em que as piadas te atingem. Cinematografia irretocável, elenco imenso (que te confunde até) e totalmente na mesma frequência, aquele gore samurai nosso de cada dia – com direito a cenas tradicionais de lances NINJA, mas com aquele gore que nos acostumamos nos últimos tempos (obrigado Kitano, obrigado Miike) e claro, a seriedade que Kitano consegue dar às mais simples das cenas. Uma aula, um privilégio. É tipo um Succession Japão Feudal style, só que usando figuras históricas reais e maltratando todo mundo. Kitano velho é mestre de tudo e todos, bicho.

Talk To Me, 2022.

Fazia muito tempo que não via um filme de Terror com T maiúsculo no cinema, acompanhado de casais em encontros e de fileiras de adolescentes legitimamente se assustando. Ainda mais algo especial como esse Talk To Me, debut dos youtubers do RackaRacka, um projeto que emana doidera, simpatia e esforço. Tudo funciona, até mesmo a antipatia (natural) dos atores adolescentes. Aquela cena de abertura é puro suco de pesadelo, te puxando pro lado fundo da piscina logo de cara. Fiquei bastante tempo conversando sobre esse filme nas semanas seguintes, porque não só possui um conceito simples e eficiente, como tem stunts hardcore e até mesmo se liga com o Espiritismo de forma torta, provando que é uma baita religião/doutrina para ser explorado em horror e sci-fi (ver também: metal do Dead Times). Parece que o sucesso comercial também foi forte. Então, que venham outras sessões de cinema como essa. Obrigado irmãos Philippou.

V/H/S/85, 2023.

Doidera. Ano passado mesmo teve um desses V/H/S, né. Sem querer parecer que tou reclamando, até porque: esse 85 é o bicho demais. O formato geral da antologia tá no prumo nessa edição. Toca como uma mixtape infernal – uma liga torta (tortíssima) em forma de fita vhs, não muito diferente de uma fita caseira que estaria dentro de um videocassete (caso fosse o videocassete do capeta). Os segmentos são hardcore crossover puro, com poucos momentos fracos, entregando aquele gore retrô nosso de cada dia. Destaque para God Of Death (baitas cenas atordoadas de terremoto) e Dreamkill (Scott Derrickson deitando no formato e entregando um dos melhores momentos da série inteira). O resto do filme é cheio de bons momentos e acaba meio que elevando o todo a ser um dos melhores V/H/S. Quem diria. Doidera. Vida longa à V/H/S, mermão.