Nessa doidera de verão nos cinemas em que Oppenheimer e Barbie acabaram sendo lados da mesma moeda (apesar de: sentido nenhum) o vencedor pra mim acaba sendo Barbie – que pelo menos não é obtuso e medroso como o épico do Nolan. Barbie também evita “O problema”, mas acaba sendo muito eficaz em apontar o roteiro da Gerwig e do Baumbach para outros (inúmeros outros) problemas, utilizando verborragia nos momentos corretos e dando nomes e títulos a tudo. Divertido, mas ainda sofre de si mesmo: como um produto pós-capitalista, é inefetivo como o drama do Nolan. Claramente não se pode ter tudo, mas pelo menos há um coração aqui, por mais cínico que possa ser (até porque: tem que).
Acho que tava mais interessado em ver o elenco imenso em ação e também porque descolei ingressos para uma sessão em 70mm do filme. De resto, acho que esperava encontrar algo, mas nada demais. Sobre o projeto, Hickman já fez tudo que deveria ser feito. E sabia que o Nolan teria que ir fundo para conseguir superar o excelente Tenet, que considero o seu maior e melhor filme – aquele que equilibra características blockbuster com doideras e interesses que são particulares ao diretor. O filme tem cerca de dois terços muito bons, montando um Avengers da física, tentando achar algum modo de se contar a própria história. Tu até, por um pequeno momento, se esquece que tudo isso tá acontecendo com um intuito nefasto e injustificável. Mas fica mais Top Gun do que… hum, não sei o que ficaria na outra ponta (talvez um daqueles documentários da BBC pós-guerra?). Mas sem a diversão imensurável que Top Gun entrega. Sem também as trevas que seria cabíveis a um filme assim. Apenas superfície, por mais bonita que seja essa superfície. Quando a bomba explode, fica essa sensação de que algo ali não foi contado, que tem algo sobrando, algo óbvio. E claro que tem.
O peso de ser tu mesmo, bróder. Tudo bem que John Wick é basicamente um personagem de Sin City criado para ser o veículo de uns dos mais durões stuntpersons do planeta (nesse capítulo 4 eles transformam a stunt de cair de uma escadaria em uma forma de arte, ALÉM DE: luta intensa com nunchaku, Donnie Yen estelar fazendo seu papel de mestre marcial cego – um delírio cinematográfico, plasticidade incomparável, BJJ de terno, neckshot afu e claro: uma sequência inteira onde João Wick usa uma porra dum fuzil com munição explosiva e explode um prédio inteiro em Paris) e ninguém espera muito mais dele do que um Yeah cansado e muitos, mas muitos movimentos milimetricamente coreografados que fazem inveja a qualquer filme da era Hong Kong clássica wuxia. Bem doidera, bem intenso, nada muito complexo ou além do que se vê. Uma belezinha, entretanto. Quando tu brincas de tentar adivinhar como eles fizeram essa porradaria toda tão bonita e crocante, dá uns bugs na mente do cara. Tem vezes que pra fazer uma cena convincente, alguém vai ter que levar uma mãozada na traqueia. Fazer coisas doloridas e filmar: sim. Vida longa à todos os envolvidos.
“The tragedy is that you are a better man than you ever allowed yourself to be”. O que aconteceu conosco, John Luther? Olhei aqui, a primeira temporada é de um longínquo 2010. O mercado de séries para TV era diferente (pra tu teres ideia, House Of Cards do Netflix começa em 2013). Eu era apenas mais um moleque baixando rips em 720p de shows britânicos em um tracker de bittorrent dedicado a esse tipo de conteúdo e assistindo em um monitor CRT. Já Luther, ainda vivia uma vida completa, naquela primeira temporada perfeita. Desde então, tudo mudou, pra ele, pra mim, pra todos nós. Semana passada estava no tram, passando pela Coolsingel em Rotterdam e não tive como não notar um enorme banner de uns cinco metros, tomando toda a lateral de um prédio. Apenas um retrato do torso de Idris Elba e as letras em vermelho na fonte de Luther. Wotcha. Olhando lá de cima pra mim, com aquela expressão de vida difícil, camarada. Tem sido uma aventura, né broder, quando comecei a te assistir, nem sabia o que era um inverno, um casamento, ou até mesmo uma carreira. Hoje em dia uso casacos pesados como os de Luther, caminhei pelas mesmas ruas e pontes que ele e Alice Morgan costumavam andar e vivo em uma cidade que também é castigada por um inverno infinito. Nas trincheiras do dia-a-dia, os anos se passaram e tudo que sobra é tudo que importa. Esse filme (que é produção do Netflix, ironia não necessária) é como uma visita a um amigo que envelhece junto contigo, mas de forma fatalmente diferente. Pra mim, Luther terminou ali naquela primeira temporada (todavia, aceitável incluir o bom livro-prequel que Neil Cross escreveu, The Calling, uma leitura muito dureza), mas tudo bem que de vez em quando a gente se encontra, pra ver que ainda usamos os mesmos tipos de roupas, temos o mesmo coração sofrido e que assim como o tempo me tratou como devia, tratou Luther também. Solitários, sorumbáticos e assombrados por nós mesmos, viramos um pro outro e perguntamos so, now what?
Aqui estou mais um dia a escrever sobre um filme do Shyamalan. Desde que Hollywood desencanou dele, seus filmes ficaram diferentes, voltando a ser mais interessantes e sempre entregando diversão. E por todos os problemas de Knock At The Cabin, o cara meio que se diverte. Mais por um excelente Bautista, imponente e vulnerável como um vilão clássico. Dá pra ver o terceiro ato vindo de longe – e a história é boa, mas não tão boa assim. Pensando aqui que em tempos de saturação de todo tipo de mídia, te segurar por um filme inteiro (como aconteceu no último Knives Out, ou nos últimos Soderbergh), é coisa de quem manja. Algumas histórias não precisam de muito mais.
A ilusão perfeita de controle. Há vários anos, comecei a nutrir um hábito ruim. Comecei a evitar filmes (e principalmente filmes) por sua temática, ou pela sua aparente narrativa, ou pelo que eu imaginava que o filme iria me fazer passar. Arrogância preemptiva, cultivada por milhares de horas consumindo essa forma de arte que tanto me deu e tanto me amparou. Entretanto, decidi por algum motivo que não queria passar perto de alguns sentimentos e sensações. Até desenvolvi um contra-hábito: me refugiei em sessões de filmes que já vi várias vezes, me convencendo que estava nessa buscando um refinamento – tentando ver algo que deixei passar na primeira vez. Mas no fundo, estava me escondendo de mim mesmo, claramente. Ainda possuo esse hábito ruim presente nas minhas decisões do que assistir, me privando por meses, ou anos, de assistir algo pois não quero caminhar por onde ele vai me levar. Talvez fosse proteção. Tár é um desses filmes, soube assim que vi a primeira imagem de Cate segurando uma batuta. Sempre fui apaixonado por Cate, desde quando muito moleque a vi de bochechas rosadas e cabelo vermelho no (otherwise) esquecível Bandits, de 2001. Renovei essa paixão por ela de novo há poucas horas, em uma cena de Tár em que ela chega em seu cavernoso apartamento de concreto queimado em Berlim, apaga as luzes, coloca Count Basie para tocar e abraça a sua parceira em um leve balanço, quase imperceptível. Amor supremo. A partir dali, eu estava vivendo com Lydia Tár, sendo levado pelo seu sotaque berlinense em alemão, pelas suas sobrancelhas que parecem ter vida própria, pelos seus pés descalços tocando piano. Parece que meu erro favorito é se apaixonar platonicamente por esse tipo de pessoa. Nos meus anos trabalhando em um ambiente corporativo, possuía raiva branca em relação à várias coisas praticadas naqueles ambientes. A maior das raivas era gramatical: com a forma como todos decidem escrever e falar em um escritório. Um constante jogo de palavras e termos e diálogos que não somavam nada, desviavam a atenção do trabalho em si e deixava claro para mim que na real, nunca foi sobre a qualidade do trabalho. Lydia joga esse mesmo jogo desprezível, mas não com a música que toca, e sim com tudo ao seu redor. Parece que ela faz isso há tanto tempo que a música decidiu invadir a sua vida, sem um objetivo definido, ou: apenas para mostrar a Lydia que nem tudo pode ser controlado, mesmo para alguém que mestrou o controle total do tempo. Para uma pessoa que vive uma vida cheia de superlativos, o que resta? Naquelas de que o se dá de presente para alguém que tem tudo. A resposta me interessa menos do que imaginei. O que me interessa mesmo é quando a ilusão de controle vai se dissolver, ou se é pra ser assim mesmo: perfeita.
Voltei a jogar video games depois de muitos anos sem um console ou PC decente. Tenho um buraco de uns oito anos na minha trajetória como jogador, precisamente a era em que os jogos pularam para além do full hd e os fps chegam a bater mais de 200. Acabou que, mesmo quando jogo um Red Dead Redemption II (um jogo “velho”), fico embasbacado com a beleza e detalhismo do cenário todo. Passo longos períodos de tempo buscando mirantes, entrando em áreas verdes e sei lá, pescando. Esqueço que é um jogo violento. Que em algum momento alguém me fará usar alguma das meia dúzia de armas que carrego por default. Chega a ser uma surpresa, ter que atirar am alguém depois de passar uma hora subindo uma montanha. Mas: sem conflito, não tem jogo. Assistindo Avatar, senti o mesmo que sinto quando jogo games lindos: uma pena que toda essa beleza seja temporária porque, inevitavelmente, o pau vai comer. E é aí que Cameron mostra um pouco de descompasso. O filme inteiro é lindo, mas a ação quase sempre cai numa vibe Disney. Num mundo pós-John Wick/The Raid, a violência estética virou uma outra forma de arte. O conflito físico é um balé grotesco (e talvez até profundo). Dentro de toda a beleza estética, as capacidades técnicas e a pura força bruta de fazer um filme com centenas de simulações hiper-realistas de água do mar (“se liga em quanto render eu consigo bancar”), o filme brilha e empurra vários setores da indústria cinematográfica a um novo patamar (o trailer de um Ant Man que passou antes do filme parece um trabalho de YouTuber perto de Avatar). Algo que não acompanha essa evolução toda, é a sensibilidade da história em si, que chega a ser rasa – mesmo que os personagens não sejam (doidera que esses seres em 3D sejam tão familiares). Não se pode ter tudo, claramente. Mas que tu possas passar meia hora em Pandora antes do diabo saber que estás morto.
Taí mais uma medida de tempo fatal: esse é o quinto V/H/S. A antologia começou em 2012, com dois bons filmes iniciais, perdeu a mão com o terceiro filme (“Viral”) e meio que reconquistou o seu mojo com o “94” e agora com esse “99”. Na moral, me perdi nos filmes e reassisti o 94 por acidente antes de assistir o 99 porque achei que não tinha visto todo o filme (acabou que tinha assistido sim, mas o que é um filme repetido na vida do cara?). 99 é um filme menos inovador do que seu antecessores, com alguns segmentos (são cinco, acho) bastante dureza de assistir, coisa que não aconteceu muito com o filme anterior. Não ia nem escrever sobre, mas semanas se passaram e ainda penso no segmento final, onde um ritual satânico dá errado (ou certo demais) e envia dois broders pra uma versão do inferno que, pra quem cresceu jogando DOOM, é uma treta inconsolável. Só por isso, vale a resenha. Para iniciados, esse quinto V/H/S é nada especial, mas se algum segmento ficar na tua cabeça como o último ficou na minha, não tem elogio muito maior. Espero que voltem com a narrativa entre os segmentos no próximo.
Toda a raiva que existe em ti – toda raiva que couber: urgente, inclemente, pulsante como uma ferida aberta, triturando concreto, expelindo fumaça, envolta em gritaria e ordens e risadas e momentos microscópicos de euforia e tensão. O filme que não te larga em nenhum momento, porque é função dele te fazer de testemunha: essa é a fúria, dor, amor e tristeza de uma parcela imensa da sociedade em que tu vives. Realizando uma revolução na base do molotov e do dedo médio em riste, da dor que permeia todos os teus dias. Se vários filmes decidem abraçar uma ideia e te dar uma versão complexa e rebuscada dela, ATHENA nem finge querer ser nada além do que é: um grito longo e assustador que merece ser vivido. O tempo distorce, os atores se camuflam em massas e respirar vira algo que tu fazes junto com eles. Visualmente feroz, esse filme é tudo que tu precisas de vez em quando. Difícil ficar melhor que isso. Um filme que te dá tudo que uma obra de arte pode te dar. O resto é contigo.
Como um sonho que se torna mais e mais difícil de se acordar. Não que os outros filmes do Jordan Peele sejam ruins, mas sempre senti que faltava algo, ou: parecia que todo mundo via algo neles que eu não conseguia pescar. Nope não dá essa impressão. Pelo contrário, é um filme que exala autoconfiança – sem em nenhum momento ser pedante. As decisões cinematográficas funcionam, o elenco entrega, os efeitos especiais são modernos e requintados, a narrativa é deliciosa. É um filme de horror apenas no centro, pois expande e abraça outros temas com sinceridade. Interessante ver menções claras ou obtusas à Texas Chainsaw Massacre, Spielberg, Tarantino, Scorsese. É como se Peele quisesse amarrar as tradições cinematográficas hollywoodianas em uma só, porque pode (e quase consegue, apesar de o resultado ser mais do que referências bem costuradas: nasce um novo tipo de filme). Há uma perfeição aqui, rara e intransponível, fatalmente norte-americana (em certo nível bem parecido com o que acontece em Top Gun Maverick, outro filme da categoria blockbuster que toca a perfeição sem medo). Talvez seja até bravura, algo raro na indústria norte-americana nas últimas décadas. Nope é raro, demanda atenção e deixa questões fundamentais na cabeça do cara. Que filme.
Fazia um tempo desde que vi um filme recente com esse tipo de ritmo. Thriller de horror pegado, ancorado na excelente Rebecca Hall, talvez num dos ápices das suas capacidades como atriz: entregando um universo próprio de desconforto, raiva, cansaço e antipatia benevolente em várias cenas. Só mais assombrado do que a performance de Hall, talvez seja ouvir (pela também excelente atuação de Tim Roth) palavras que soam incrivelmente similares à coisas que eu mesmo disse em relacionamentos em algum momento da minha vida, por mais doloroso que seja admitir isso. Horror puro e verdadeiro é se ver refletido em personagens nojentos. Certa vez li que amadurecer é olhar para si anos atrás e sentir vergonha e desgosto por si mesmo. Não sei o quanto isso é verdade, ou se serve de métrica para alguma coisa. De qualquer forma, o tempo passa e algumas coisas permanecem, aguardando calmamente o seu momento para se desenrolarem ou explodirem. Nesse meio tempo, muita coisa pode acontecer. Uma vida inteira pode se desenvolver. O difícil mesmo é escapar de si mesmo.
Em algum momento de Prey me senti tipo esse gif do Jeff Goldbum. Não é complicado fazer um filme bom e divertido tipo esse, mesmo usando uma IP que permeia o imaginário popular por décadas. Corta pro básico: O Predador é um ser caçador que viaja o cosmos caçando troféus. Tempo é uma ilusão, então dá pra colocar ele na América do norte durante as primeiras décadas do genocídio colonial do continente. Coloca o predador caçando uns bichões tipo lobos, ursos brutos e tal, meio que se divertindo sozinho. E fatalmente ele cruza com uma das mais poderosas tribos nativas da região: os Comanche. Pronto, Predador versus Comanche. O resto é detalhe. Tu precisas de um cinegrafista que saiba usar a selva com esmero, atores confortáveis em seus papéis e claro, violência estética inclemente (com uma predileção por efeitos práticos, mesmo tendo que usar VFX em todos os animais – menos naquele cão muito parça da protagonista). Curti bastante que os Comanche quando falam inglês demonstram uma coolness quase impossível (que me fez lembrar de Scalped um pouco). Ótimo filme, que se junta à outros filmes diferentes que a franquia fez (Predators de 2010 é bem massa também). Essa fórmula de Prey serve pra qualquer IP de horror/ação que precise de um gás. Esperando com calma um Predador no Japão feudal, ou contra mercenários gregos de Alexandre.
Um filme acima da média para a Blumhouse, e abaixo da média para Scott Derrickson, que repete aqui a colaboração com Ethan Hawke (excelente como The Grabber, criando com pouco – quase nada – um personagem que imediatamente ganha espaço no imaginário de filmes de horror). Entrei nesse achando que seria algum horror de verdade, mas ganhei um thriller setentista baseado em um conto do Joe Hill que usa alguns clichês do pai Stephen King (semi-paranormalidade, bullies, jovens se metendo em merda) para contar uma história competente, mas que se distrai consigo mesma, seja nas atuações dureza do cast juvenil, seja na progressão tão linear da história que o interesse meio que some (acho que algumas cenas eu nem registrei direito o que tava acontecendo). Um Stranger Things mais adulto, ou um thriller de serial killer Disney. Hawke tentou (e quase consegue), mas além da máscara, não tem muito mais.
Comecei esse filme sem saber muito sobre, imaginando que seria algum filme de máfia pós-guerra estiloso (“ah parece ser sobre um alfaite que trampa pra máfia, massa, vamo ae”). Quase acertei, mas não sabia que também se passa todo em um lugar só. O contraste constante de modos e jeito de falar de um britânico em Chicago acabou por sustentar o meu interesse durante o filme todo. Observar Mark Rylance trabalhando nesse filme é demais. Utiliza o pouco que tem com esmero e precisão, sustentando com cuidado o ritmo de cenas que quase (quase) perdem o gás quando o foco sai muito dele. A diferença que uma milhagem alta faz.
A doidera de existir. Não fiquei surpreso ao ver o nome dos irmão Russo nos créditos. É uma espécie de Avengers da A24: filtrando um conto meio Siddhartha acidental via comédias da década de 80, com maximalismo violento década de 00 e com questões de identidade típicas dos anos 10. Um filme que, fatalmente, só poderia existir nessa década pirada que estamos vivendo nesses anos 20. Na penúltima temporada de The Expanse, um dos personagens professa que a única escolha real que temos é ir ou ficar. No decorrer da vida, ir ou ficar é a decisão suprema, que se desmembra em infinitas decisões menores. Mas tudo começa ali, no segurar/soltar. O material de que a existência é feita está todo compreendido entre o ato de ficar ou ir. Surpreso, me vi soltando lágrimas com momentos de Everything Everywhere All at Once. Michelle Yeoh (eterna crush desde sei lá, Police Story 3, pelo menos), uma mestre em plena forma, encarna o filme de uma forma que a gravidade do seu trampo puxa todo o resto do elenco junto. Um filme esquisito, clichê e não muito inovador – mas mesmo assim forte pra caralho. Como a vida.
Luto como portal para alucinações, sonambulismo e uma vida solitária alienante. Os filmes do David Bruckner são excelentes construções de monstros de filme de horror, e nesse ele abusa de uma espécie de trompe-l’oeil digital para aos poucos nos apresentar uma presença maligna brutal. Mas há outras camadas de treta, sutis e sem muita resolução (a porta para “é tudo uma alucinação apenas” é aberta algumas vezes). Rebeca Hall está excelente como uma pessoa naturalmente antipática e irritante, dureza de simpatizar mas ao mesmo tempo interessante. Luto é um troço complicado.
De zero à trezentos quilômetros por hora em alguns minutos. Um brutal espetáculo sadista de desgraceira tropical apocalíptica em pura forma gore. Um grand guignol vindo direto de Taiwan, que me dá aquela sensação massa de que há horror podre de alta qualidade a ser descoberto em vários países (tipo aquela sensação que o coreano Train To Busan deu, ou o japonês One Cut Of The Dead). Talvez seja o mais próximo que Crossed de Garth Ennis chegará a virar filme. Algumas cenas me fizeram dar aquela característica viradinha de cara, coisa que não fazia há muito. Ah, nada como ser fã de horror. Várias cenas são esteticamente lindas e repulsivas ao mesmo tempo, em uma espécie de balanço improvável entre técnica e desregramento grindcore.
Não estava tendo um dia muito bom. Viver em um inverno infinito tem seus momentos baixos. Quase cancelei o ingresso, só pra ficar na minha. Mas acabei indo, me empurrando para algumas horas de entretenimento multimilionário apenas pra ver o que sentia. Não estava preparado para um Batman que se sentia tão merda e tão solitário quanto eu. Talvez seja o primeiro filme do personagem que tem narração em off. Talvez seja o primeiro filme que nos apresenta o Batman Deprê tão comum nas HQs. Bruce está no seu segundo ano como vigilante, vivendo em uma noite infinita, entrando e saindo de foco quando pensa nas consequências do que faz, ouvindo Nirvana todo soturno na Bat Garagem (entendo). Dolorido, falando baixo, quase murmurando, deficiente em vitamina D e ainda levando umas porradas bem dadas. A vida de um bilionário vigilante é uma dureza. O filme é de uma estética inclemente, trazendo a Gotham gótica em todo o seu esplendor. É como se os filmes do Tim Burton tivessem cruzado com alguns do Scorsese. Batman ainda não se tornou um mito, caminha entre as pessoas como se nada tivesse acontecendo, dirige veículos arromba-ouvido, leva tiro no peito como se fosse essa a intenção. Metal pesado. O broder tá tentando reverter o fluxo da cachoeira na base do soco. Apesar da melancolia grudenta de Bruce, o filme todo se desdobra mais como uma ode à Gotham, uma cidade suja, cheia de obras abandonadas, passando por uma temporada de chuva que parece não querer terminar. As cenas que usam o anoitecer/amanhecer como pano de fundo são muito bonitas, assim como o som distinto dos passos do Batman em algumas cenas, ou a textura do couro que a Selina usa. Por momentos, esqueci completamente do Riddler e suas tretas. O filme sucede em ser um ataque sensorial, usando ruído, escuridão e silhuetas para se firmar. Não me senti tão melhor quando o filme acabou, mas gostei de ter ido.
O trabalho do Joachim Trier sempre me chamou atenção, aliás, pesado pensar que Reprise é de 2006 (um século atrás). Onde estava quando assisti esse filme? Acho que ainda na faculdade em Belém. Experimentando a vida de uns nórdicos meio ricos em Oslo. The Worst Person in the World revisita temas dos seus primeiros filmes, mas sem pesar muito no intelectualismo. É um filme que se expande sozinho, demonstra uma vida própria, criado por alguém experiente. Cheio de atores interessantes e cenas lindas. A vida, mesmo em um dos cantos mais ricos e prósperos do mundo, ainda é a mesma coisa para todos nós. Mesmo que em alguns momentos o drama não seja muito além de um conjunto de escolhas bem aceitáveis. Renate Reinsve é possivelmente a maior paixão cinematográfica dos últimos tempos junto com Alana Haim e o filme é repleto de momentos que doem demais para quem está na mesma faixa etária dos personagens do filme. Mas assopra também: uma risada, um novo olhar, um novo dia. Ninguém sai ileso.
Um primeiro ato encantador, bonito até o osso. Um segundo ato meio naquelas e um terceiro ato que é completamente roubado por Cate Blanchett (como sempre deveria ser). O delírio cinematográfico que é esse filme é coisa que somente o Del Toro consegue fazer hoje me dia, aparentemente. Alguns cenários são intrincados, vindo direto de um passado que não sei se existiu dessa forma. Mas se existiu, que doidera absoluta. É um bom filme, mas fica algo faltando, por mais que sua beleza tente nos distrair.
Já vimos esse filme pelo menos meia dúzia de vezes. Cara comete/sofre eventos terríveis, escolhe reclusão e vira o clássico Broder Quieto Com Passado Desconhecido, até que é forçado a reviver esse passado para proteger o seu presente. Notei que Brody faz a trilha sonora desse filme, além de escrever o roteiro. Um projeto de paixão, como dizem os gringos. Há um certo esmero que transparece nas cenas, mesmo que o tutano seja insípido. Talvez a melhor forma de ver esse filme é notando que alguns loops são escolha pessoal, mesmo que não pareça. Em certo momento, o barbeiro e sponsor de Brody diz que “não querer falar sobre seus problemas é uma escolha tão válida quanto querer falar sobre”.
Um forte raio de sol da manhã que atravessa a tela. É como visitar memórias alheias em forma de filme. Acho que passei o filme inteiro com um sorriso aberto no rosto, embriagado pelo grão da cópia em 70mm que tive o privilégio de assistir, pensando que de certa forma eu já vivi aquilo ali. Um sentimento impossível, claro. Mas de que serve filmes como esse se não para justamente para isso? Bicho, como eu sorri. Gargalhei. Que vida excelente. Os ecos de Licorice Pizza em minha própria história são inescapáveis (minha primeira namorada era dez anos mais velha que eu – e eu tinha mais ou menos a idade do Gary quando a conheci), o amor pelo cinema também, assim como a predisposição para o romantismo descarado, singelo e imediato que PTA insere em seus filmes. Quando Alana solta um “idiot” para Gary no final do filme, estalou em minha cabeça: eu acho que já vivi isso aí. Essa ficção já foi a minha realidade, ou vice-versa.
A desolação que a vasta paisagem causa nesse filme é encantadora (me fez pensar bastante naquelas baitas cenas de Top Of The Lake). Jane Campion comanda narrativa e personagens de forma magistral (talvez valha notar que é um dos poucos momentos de sua obra onde personagens masculinos estão em destaque), montando um crescendo sutil que alcança forte tensão em seu terceiro ato. Os atores encontram formas distintas de dar profundidade ao seus personagens e, por mais que Cumberbatch e Dunst estejam em plena forma, é de Kodi Smit-McPhee os melhores momentos do filme. Esse lance de homens comumente transferirem seus sofrimentos a terceiros chega a dar um nó na garganta, por mais tradicional que seja esse tipo de comportamento. A trilha de Jonny Greenwood é excelente como sempre, envelopando as cenas sem nunca te deixar muito à vontade. Por um bom tempo vou ficar pensando naquela cena do “picnic”, por sua beleza e verdade absoluta.
Um filme em estado bruto. Inclemente one-shot de uma noite em uma cozinha de um restaurante em ascensão em Londres. Não precisa ter trabalhado em uma cozinha para entender a destruição controlada e gradual que uma noite dessas causa em uma pessoa, por mais normal que esse tipo de noite seja dentro dessa indústria (quando trabalhei em restaurantes, aprendi que uma noite em que ninguém se esconde em algum lugar para chorar por uns minutos não é uma noite normal). O excelente Stephen Graham faz um chef em brasas, cansado, querendo sumir. Um ator que não encontra pares atualmente quando se trata em fazer personagens que são broders comuns carregando bem mais do que são capazes. Vinette Robinson faz a sua sous-chef, também carregando mais do que consegue, entretanto de forma quase graciosa (é dela o melhor momento do filme: uma mijada destruidora de vidas em cima da gerente do lugar). Sempre aprecei filmes e séries que retratam esse universo e posso colocar Boiling Point lá em cima, junto com grandes como Dinner Rush e Big Night.
Envelhecer é uma doidera. Ou: é como assistir um filme comentando a si mesmo. Em tempos de consumo de mídia mediado por um, dois, três comentadores (dia desses assisti um show online que só dava pra ver com um streamer comentando ao mesmo tempo), franquias infinitas que se auto-referenciam insistentemente, análises (longas, curtas) e constantes (podcasts que só comentam um filme ou série), esse Matrix me fez eu me sentir velho (tudo bem). Ainda é um esculacho visual e uma ode à Carrie-Anne Moss (entendo). Talvez seja mais pra poder ver o Neo e Trinity novamente (entendo). Me diverti e acho que por mais um tempo vou continuar nessa.
*coçando a testa com a unha do polegar direito* Então… bom. Dá pra pegar esse especial do Louis e colocar como lado B do último especial do Dave Chapelle, The Closer. Ou melhor, esse seria o Lado A e o Chapelle fica com o Lado B. Os dois comediantes possuem formas distintas de falar sobre os mesmos temas. Chapelle opta por uma abordagem de força bruta, difícil de penetrar e que não deixa muito espaço para sequer rir, é uma palestra, basicamente. Louis mostra uma cadência mais clássica (acho que nesse especial foi a primeira vez que consegui “enxergar” como ele monta a maior parte do material dele, pois ele tá um pouco cansado e deixa aparentar os começos, meios e fins), uma escolha mais leve de palavras e termos, mesmo que ainda seja bruto na hora do punchline. Mas os dois falam sobre as mesmas coisas mesmo. Envelhecer é uma merda. Tu vês o mundo aparentemente acelerar cada vez mais e te deixando com mais dúvidas do que respostas. Mesmo que o teu trabalho seja exatamente discutir essas dúvidas, não fica mais fácil com o tempo. A treta é infinita. Dado uma linha do tempo longa o suficiente, todo mundo vai se provar um baita filho da puta. Incluindo dos dois comediantes, que fazem parte do Top 5 da sua geração. Se não valem por mais nada, esses dois especiais servem como o registro de dois homens bem-sucedidos, envelhecendo em tempo real e encontrando os limites de sua arte e suas formas de viver. Não chega a ser triste, nem muito engraçado. Apenas é.
Tem vezes que querer gostar de um filme não é o suficiente. A cinematografia de Antlers é tão sombria, que não dá pra ver quase nada na maioria das cenas de medo. O drama funciona, tratando de temas comuns e recorrentes em cidades fantasma dos Estados Unidos hoje em dia. Todavia, fora alguns momentos realmente interessantes (a primeira cena no Necrotério e a da crime scene na casa dos guri), tudo parece ser incompleto. Keri Russel faz o que pode, mas mesmo assim não resolve muita coisa (Felicity faz uma cota já né). Curto demais um filme sombrio, mas falta aquele tutano massa, o nerdismo malemolente, o gore fundamental.
Meu filme favorito do Ben Wheatley é Kill List. In the Earth é um excelente par pra ele, apesar de ser um filme diferente. Tecnicamente, os elementos parecem um pouco deslocados, talvez intencionalmente. Há contradições e conflitos óbvios. Mas no fim, acaba sendo um filme de terror singular. Produzido em um tempo singular. Talvez o único filme de terror da era covid que eu tenha assistido. Alguns atores (Reece Shearsmith, principalmente) apoderam-se do material e entregam ótimos momentos. E como não gostar de um filme que usar ambient drone composto por Clint Mansell para se comunicar com uma entidade do mato. Entre arte, ciência e folclore, não parece existir um caminho óbvio para se perguntar e responder algumas questões que o filme levanta. E tudo bem.
O Kino é um cinema de rua em Rotterdam que no momento está com uma mostra interna chamada Art Of The Heist, com quinze filmes clássicos de assalto (roubo?) ocupando a sua programação. Heat foi exibido em 35mm, num print de qualidade absurda de vídeo e áudio, para uma sala de cinema lotada em uma noite de segunda-feira de garoa. Tem vezes que essa cidade é nerd pra cacete. Meu tipo de cidade. Um filme como Heat derrete a tela, a crocância dos contrastes, o som manipulado com maestria, o preto da tela derramando sobre a escuridão da sala. Os diálogos ecoando com clareza e sutileza pelos falantes. Aí começa o tiroteio. Nada mais importa. É ser moleque assistindo Tela Quente escondido dos pais novamente, mas dessa vez sem tentar abafar o som da TV. Quero mais, quero mais alto. E Heat entrega. As horas passam voando. Seja Pacino ou DeNiro, tem um pouco de tudo nesse filme. Impossível não lembrar que primeiro assisti Heat em algum VHS, depois DVD, Bluray e etc – mas nada chegou perto da urgência que os 35mm dão ao filme. Que caminho longo para chegar aqui. Que vida excelente. Mannzão ali na tela comandando tudo.
“The days move along with regularity, over and over, one day indistinguishable from the next”. A vida de mais um cara extremamente solitário e penitente, sob os olhos de Schrader, um mestre. Trilha sonora de metade do BRMC, cinematografia minimalista e crocante. Os dias infinitos de um broder que vive de uma forma deliberada, utilizando de forma discreta um talento que desenvolveu após ter ido longe demais com seus talentos anteriores. Oscar Isaac é um avatar perfeito para esse tipo de personagem que Schrader escreve e filma tão bem. Sua narração é quase monótona, apresentando fatos e observações em um tom reto de sem muita modulações. Talvez seja só eu, mas no momento em que me encontro, o misto de vida monasterial, meditação, disciplina, autoanálise e restrições sociais que Schrader trabalha em seus personagens é como uma sessão de terapia em forma de filme. Por um espaço de tempo, nossas solidões se encontram.
Sempre tem uma treta acontecendo em algum lugar. Dessa vez é em algum lugar da Dinamarca. Um dia bem ruim na vida de de dois policiais em um subúrbio em chamas. A história é sempre a mesma, mas há um bom pulso forte nesse filme. No final das contas, os papéis sempre meio que são os mesmos, não importa muito a posição geográfica.
Fear is the little death. Um filme gigantesco. Que sem perdão, deposita toda a sua escala no espectador. Pesado, melancólico, estupidamente bonito. Pensei um pouco em The Green Knight, quando o filme terminou. Pensei também que tarefa absurda tentar contar uma história visualmente expansiva, com cenas que parecem que de cinco em cinco minuto querem te soterrar. A trilha sonora é um metal pesado, pressionando as imagens como uma bateria colossal. Acho que já vivi algo parecido, mas não tenho certeza se foi com um filme.
Fico meio em dúvida sobre o quanto autoconsciente o Shyamalan é. Acho que vou decidir que ele sabe o que tá fazendo. Pois em alguns momentos, rola um lance com o áudio desse filme que só pode ser brincadeira ou uma escolha deliberada. Sem contar no diálogo, que causa uma sofrência meio gratuita. Mas fora isso, se eu tivesse uns doze anos de idade, ia curtir pra caralho ver esse filme e chegar e contar pra todo mundo ver na escola. Talvez seja isso, né. Um filme que não se se leva muito a sério, mas que mesmo assim é bem filmado e montado. É como um sonho, que tu não sabes muito bem se é um sonho engraçado ou triste.
Não lembro muita coisa do original, acho que a última vez que assisti foi em VHS ainda. Nunca entrei numas com o material do Clive Baker que foi adaptado para filmes. Ele é creditado como um dos roteiristas desse remake, que achei bem competente e funcionou muito bem. Chicago continua sendo uma baita cidade para ser filmada. A parte do horror mesmo, não sei se foi muito eficiente (algumas cenas parece que foram inseridas na pós-produção, após alguém dizer “gente tá faltando uma cena assim assado”), mas como drama sobre o ciclo infinito de demolição e construção que cidades muito grandes passam década após década, bom filme. Até mesmo a parte Velvet Buzzsaw foi interessante. Lendas urbanas eternas, fazendo o que sabem fazer melhor.
Bagulho é doido. James Wan sempre foi um diretor que sabe o que está fazendo, mesmo que esse “o quê” seja ruim (Aquaman, Furious 7), bom (The Conjuring, Death Sentence) ou simplesmente filme-pra-adolescente-se-divertir (Saw, continuações de Conjuring e Insidious). Malignant é meio indeciso como filme, pois há uma produção massa, que constrói uma cinematografia até rebuscada às vezes (numas meio “ei, faz meu filme parecer Se7en pfv”) – mas daí tudo fica meio zoado com a atuação do cast em cima dos diálogos totalmente dureza de se testemunhar e com a notória predileção por gore grotesco de Wan (em boa forma, mas de novo, meio indeciso no que quer “ser”). No final das contas, divertido pra carai, mesmo que ali pelo começo dê uma canseira leve. Um filme feito por um cara que certamente passou horas em seções de horror de videolocadoras, assistia aquelas sessões de filmes B da BAND e que até hoje se lembra dos filmes que viraram lenda na escola ali pela sétima série.