A ressonância emocional de The Bear na minha imensa cabeça é tremenda, me sinto como um moleque ouvindo no repeat Ride The Lightning, tentando memorizar cada detalhe e encontrando pedaços de mim que nem sabia que existiam. Talvez seja isso: de vez em quando tu encontras alguma obra de arte que te mostra que tu também és assim, que o jeito que tu vês o mundo não é solitário, por mais forte que seja essa sensação. Essas coisas importam, ou prefiro escolher que importam: o que ressoa contigo. E comigo é uma série sobre aspirar, ser, e fazer. Ênfase no fazer, que é algo que sinto que experimento na minha vida só nos últimos anos. Matei os episódios dessa temporada em dois dias, chorando, rindo, gargalhando. Me emocionei com o elenco, com o roteiro que, junto com a escrita do Jesse Armstrong pra Succession, é de um impacto emocional fodido. Como é bom ser nerd de roteiro. Que época para se viver. The Bear finca o pé num mundo crowdeado de shows e séries, tal qual banda que lança um segundo disco ainda mais poderoso que o primeiro. A mim, só resta agradecer, cantar as músicas da trilha sonora junto e ver os personagens repetindo coisas que falei ou pensei e me espantar que o abismo entre a minha vida e a vida deles é na verdade apenas uma brecha (bróder, aquela conversa sobre service me arrepiou, parece que foi extraída de algo que já conversei na barbearia). Que a gente consiga passar um tempo vivendo dessa forma.
Acho que tava mais interessado em ver o elenco imenso em ação e também porque descolei ingressos para uma sessão em 70mm do filme. De resto, acho que esperava encontrar algo, mas nada demais. Sobre o projeto, Hickman já fez tudo que deveria ser feito. E sabia que o Nolan teria que ir fundo para conseguir superar o excelente Tenet, que considero o seu maior e melhor filme – aquele que equilibra características blockbuster com doideras e interesses que são particulares ao diretor. O filme tem cerca de dois terços muito bons, montando um Avengers da física, tentando achar algum modo de se contar a própria história. Tu até, por um pequeno momento, se esquece que tudo isso tá acontecendo com um intuito nefasto e injustificável. Mas fica mais Top Gun do que… hum, não sei o que ficaria na outra ponta (talvez um daqueles documentários da BBC pós-guerra?). Mas sem a diversão imensurável que Top Gun entrega. Sem também as trevas que seria cabíveis a um filme assim. Apenas superfície, por mais bonita que seja essa superfície. Quando a bomba explode, fica essa sensação de que algo ali não foi contado, que tem algo sobrando, algo óbvio. E claro que tem.
O peso de ser tu mesmo, bróder. Tudo bem que John Wick é basicamente um personagem de Sin City criado para ser o veículo de uns dos mais durões stuntpersons do planeta (nesse capítulo 4 eles transformam a stunt de cair de uma escadaria em uma forma de arte, ALÉM DE: luta intensa com nunchaku, Donnie Yen estelar fazendo seu papel de mestre marcial cego – um delírio cinematográfico, plasticidade incomparável, BJJ de terno, neckshot afu e claro: uma sequência inteira onde João Wick usa uma porra dum fuzil com munição explosiva e explode um prédio inteiro em Paris) e ninguém espera muito mais dele do que um Yeah cansado e muitos, mas muitos movimentos milimetricamente coreografados que fazem inveja a qualquer filme da era Hong Kong clássica wuxia. Bem doidera, bem intenso, nada muito complexo ou além do que se vê. Uma belezinha, entretanto. Quando tu brincas de tentar adivinhar como eles fizeram essa porradaria toda tão bonita e crocante, dá uns bugs na mente do cara. Tem vezes que pra fazer uma cena convincente, alguém vai ter que levar uma mãozada na traqueia. Fazer coisas doloridas e filmar: sim. Vida longa à todos os envolvidos.
“The tragedy is that you are a better man than you ever allowed yourself to be”. O que aconteceu conosco, John Luther? Olhei aqui, a primeira temporada é de um longínquo 2010. O mercado de séries para TV era diferente (pra tu teres ideia, House Of Cards do Netflix começa em 2013). Eu era apenas mais um moleque baixando rips em 720p de shows britânicos em um tracker de bittorrent dedicado a esse tipo de conteúdo e assistindo em um monitor CRT. Já Luther, ainda vivia uma vida completa, naquela primeira temporada perfeita. Desde então, tudo mudou, pra ele, pra mim, pra todos nós. Semana passada estava no tram, passando pela Coolsingel em Rotterdam e não tive como não notar um enorme banner de uns cinco metros, tomando toda a lateral de um prédio. Apenas um retrato do torso de Idris Elba e as letras em vermelho na fonte de Luther. Wotcha. Olhando lá de cima pra mim, com aquela expressão de vida difícil, camarada. Tem sido uma aventura, né broder, quando comecei a te assistir, nem sabia o que era um inverno, um casamento, ou até mesmo uma carreira. Hoje em dia uso casacos pesados como os de Luther, caminhei pelas mesmas ruas e pontes que ele e Alice Morgan costumavam andar e vivo em uma cidade que também é castigada por um inverno infinito. Nas trincheiras do dia-a-dia, os anos se passaram e tudo que sobra é tudo que importa. Esse filme (que é produção do Netflix, ironia não necessária) é como uma visita a um amigo que envelhece junto contigo, mas de forma fatalmente diferente. Pra mim, Luther terminou ali naquela primeira temporada (todavia, aceitável incluir o bom livro-prequel que Neil Cross escreveu, The Calling, uma leitura muito dureza), mas tudo bem que de vez em quando a gente se encontra, pra ver que ainda usamos os mesmos tipos de roupas, temos o mesmo coração sofrido e que assim como o tempo me tratou como devia, tratou Luther também. Solitários, sorumbáticos e assombrados por nós mesmos, viramos um pro outro e perguntamos so, now what?
Aqui estou mais um dia a escrever sobre um filme do Shyamalan. Desde que Hollywood desencanou dele, seus filmes ficaram diferentes, voltando a ser mais interessantes e sempre entregando diversão. E por todos os problemas de Knock At The Cabin, o cara meio que se diverte. Mais por um excelente Bautista, imponente e vulnerável como um vilão clássico. Dá pra ver o terceiro ato vindo de longe – e a história é boa, mas não tão boa assim. Pensando aqui que em tempos de saturação de todo tipo de mídia, te segurar por um filme inteiro (como aconteceu no último Knives Out, ou nos últimos Soderbergh), é coisa de quem manja. Algumas histórias não precisam de muito mais.
Essa produção escocesa me apareceu meio que do nada, achei interessante porque não tenho muitas memórias de produções em plataformas de óleo e sempre me interessei pelo tema (lembrando aqui do gibi The Massive, que tem bons momentos em plataformas) e claro: escoceses. De vez em quando o cara tem que ouvir esse sotaque, que faz tudo parecer mais sério E engraçado do que se parece ao mesmo tempo. A série se desenrola como uma treta apocalíptica que, caso tomasse lugar em uma nave espacial, encaixaria perfeitamente sem tirar nem por. Curioso como sci-fi pode acontecer muito mais perto do que se imagina. Grande crédito ao ritmo dos episódios, que controla a narrativa de forma deliciosa, mantendo os personagens complexos e encantadores conforme a temporada vai avançando. Li em algum lugar que um dos problemas com produções hoje em dia é a necessidade imediata que personagens tem em se explicar a todo momento. Não é um dos problemas de The Rig. O ambiente isolado ajuda muito também, há um excelente trabalho de VFX acontecendo em várias cenas de forma sutil. Coisa linda de se ver. No final da temporada, fica a sensação de que em uma linha do tempo longa o suficiente, toda a experiência humana nesse planeta não dura quase nem um minuto. E tudo bem.
A ilusão perfeita de controle. Há vários anos, comecei a nutrir um hábito ruim. Comecei a evitar filmes (e principalmente filmes) por sua temática, ou pela sua aparente narrativa, ou pelo que eu imaginava que o filme iria me fazer passar. Arrogância preemptiva, cultivada por milhares de horas consumindo essa forma de arte que tanto me deu e tanto me amparou. Entretanto, decidi por algum motivo que não queria passar perto de alguns sentimentos e sensações. Até desenvolvi um contra-hábito: me refugiei em sessões de filmes que já vi várias vezes, me convencendo que estava nessa buscando um refinamento – tentando ver algo que deixei passar na primeira vez. Mas no fundo, estava me escondendo de mim mesmo, claramente. Ainda possuo esse hábito ruim presente nas minhas decisões do que assistir, me privando por meses, ou anos, de assistir algo pois não quero caminhar por onde ele vai me levar. Talvez fosse proteção. Tár é um desses filmes, soube assim que vi a primeira imagem de Cate segurando uma batuta. Sempre fui apaixonado por Cate, desde quando muito moleque a vi de bochechas rosadas e cabelo vermelho no (otherwise) esquecível Bandits, de 2001. Renovei essa paixão por ela de novo há poucas horas, em uma cena de Tár em que ela chega em seu cavernoso apartamento de concreto queimado em Berlim, apaga as luzes, coloca Count Basie para tocar e abraça a sua parceira em um leve balanço, quase imperceptível. Amor supremo. A partir dali, eu estava vivendo com Lydia Tár, sendo levado pelo seu sotaque berlinense em alemão, pelas suas sobrancelhas que parecem ter vida própria, pelos seus pés descalços tocando piano. Parece que meu erro favorito é se apaixonar platonicamente por esse tipo de pessoa. Nos meus anos trabalhando em um ambiente corporativo, possuía raiva branca em relação à várias coisas praticadas naqueles ambientes. A maior das raivas era gramatical: com a forma como todos decidem escrever e falar em um escritório. Um constante jogo de palavras e termos e diálogos que não somavam nada, desviavam a atenção do trabalho em si e deixava claro para mim que na real, nunca foi sobre a qualidade do trabalho. Lydia joga esse mesmo jogo desprezível, mas não com a música que toca, e sim com tudo ao seu redor. Parece que ela faz isso há tanto tempo que a música decidiu invadir a sua vida, sem um objetivo definido, ou: apenas para mostrar a Lydia que nem tudo pode ser controlado, mesmo para alguém que mestrou o controle total do tempo. Para uma pessoa que vive uma vida cheia de superlativos, o que resta? Naquelas de que o se dá de presente para alguém que tem tudo. A resposta me interessa menos do que imaginei. O que me interessa mesmo é quando a ilusão de controle vai se dissolver, ou se é pra ser assim mesmo: perfeita.
Godspeed You! Black Emperor – All Lights Fucked on the Hairy Amp Drooling – o tipo de coisa que parece que nunca ia acontecer: versões digitais de uma das 33 fitas que o GY!BE fez pro primeiro disco deles em 1994 e jamais tinham caído online. um acontecimento.
Lord Elephant – Cosmic Awakening – stoner doom blues do ano.
Czarface – Czarmageddon! – felicidade em forma de: You can feed me to the sharks, I’ll come back in a shark-skin suit Hotter than hibachi sauce, wiping out your zombie horde
Silvana Estrada – Marchita – ter um coração partido embalado por Silvana: motivos para se ter o coração partido.
Sault – AIR – o nosso coletivo anônimo de r&b favorito atinge novos patamares, sedimentando o poder do produtor e capitão Inflo sob todas coisas musicais vindas da Inglaterra. o groove dá espaço para orquestrações absurdas, entregando um disco imenso, como sempre deveria ser.
Tim Bernardes – Mil Coisas Invisíveis – fora do tempo e espaço, Tim tá na dele. jovem mestre em pleno controle da sua vibe.
Vince Staples – RAMONA PARK BROKE MY HEART – várias vezes durante o ano precisei de um disco assim.
Soichi Terada (寺田創一) – Asakusa Light – “…feelgood music that’s the aural equivalent of a dopamine rush at sunrise.”
Kendrick Lamar – Mr. Morale & The Big Steppers – kendrick has been going tru somethin’. deixa o cara. aprecia e acompanha. um privilégio.
Charley Crockett – The Man from Waco – i’ll tell you something true every little thing i do i stay lonely all the time.
Raum – Daughter – hardcore: “There are fragments of beginnings and a deep sense of loss.”
Kenny Beats – LOUIE – now I can hold my head up high. fazendo jazz com trackpad de macbook. um doutor especialista trabalhando.
Curren$y & The Alchemist – Continuance – ta da da ta da da.
Joey Bada$$ – 2000 – you fuckin’ with the realest cat since Larry David.
Shinichi Atobe – Love of Plastic – “there’s a breeze of warm air that takes over whenever his music is played, a promise of better days, blue skies, tingling skin, sultry evenings – all that hammy stuff. “
Burial – Antidawn – uma solidão interminável.
Denzel Curry – Melt My Eyez See Your Future – i’m killing all my demons cuz my soul is worth redeeming.
Black Thought & Danger Mouse – Cheat Codes – já tava excelente e daí aparece um DOOM que deixa o cara tristão.
macaroom – Inter Ice Age 4 – o salvador de manhãs mais competente do ano.
Kali Malone – Living Torch – obrigado, Kali.
Warmth – Pale Sun – vou escolher esse EP do prolífico Warmth, mas qualquer coisa que ele soltar vale a audição algumas vezes. ambient que soa como tu gostarias que ambient soasse.
Boris – W – bons tempos pra ser fã de Boris. nos últimos anos, soltaram muito material. W é pura doidera Borisiana, indo de vibes kawaii-esquisito pro crowbar-de-final-de-semana de uma faixa pra outra. excelente.
Freddie Gibbs – $oul $old $eparately – sem pares né, poder sonoro que deve ser experimentado de vez em quando.
Codeine – Dessau – mais um disco perdido. 30 anos engavetado, uma obra prima slowcore intacta, do jeito que a banda queria. pancada.
Pan•American – The Patience Fader – um ano que até teve disco do Pan•American bicho.
Eiko Ishibashi (石橋英子) – Drive My Car Original Soundtrack – ideias imaculadas: e se a gente chamasse a Eiko Ishibashi pra fazer a trilha do nosso filme?
Ron Trent – What do the stars say to you – aulas. é dar play e aprender a viver.
Flora Purim – If You Will – coisa de quem sabe demais, minha nossa senhora.
Charles Stepney – Step on Step – um monumento: “The music that makes up Step on Step was created by Stepney alone, in the basement of his home on the Southside of Chicago, sometime in the late 1960s and early 1970s”
Conway the Machine – God Don’t Make Mistakes – um ano em que rappers exploraram suas tretas consigo mesmo em público. bom pra gente.
Laurent Bardainne & Tigre d’Eau Douce – Hymne au soleil – um dia de sol em forma de disco.
Natalia Lafourcade – De Todas las Flores – dizem que a Natalia escreveu o que viria ser esse disco enquanto passava por um coração partido. uma banda inacreditável (Marc Ribot! ) e toda a dor & beleza que tu conseguires aguentar.
Klaus Schulze – Deus Arrakis – o ponto final de uma carreira imensa. um presente de Klaus antes de partir: ‘Deus Arrakis‘ became another salute to Frank Herbert and to that great gift of life in general.”
Teve uma época, ali depois da faculdade e antes do Youtube, em que garimpar e assistir os curtas de conclusão de curso da Supinfocom era um hobby entre eu e amigos. Dezenas e trampos lindos, complexos, que não só mostravam o estado atual da animação, como experimentavam sem limites. Era um bom hábito. Demorei pra entrar em Love Death + Robots, as temporadas foram de acumulando, alguns clientes jurando que eu estava perdendo algo massa. Por algum motivo, esteve fora dos meus interesses por um tempão. Recentemente, parece que o tema dos meus dias é descobrir que tudo que eu queria estava bem na minha frente todo esse tempo. O clichê de que the only way out is through em plena ação. Fui assistindo aos episódios da primeira temporada e rindo pra mim mesmo: “quanto tempo faz que não me sinto assim? quer não vejo algo tão bonito? e essas ideias, que sempre me agradaram, estavam ali todo esse tempo?”. O nível técnico é embasbacante, alguns episódios são um esculacho, me atualizando nas capacidades da animação hoje em dia (as fichas técnicas dos eps são uma lista de peso pesados da área). A temática: mortal. Tal como ler um livro e sentir que algumas passagens foram extraídas do teu cérebro e postas em páginas só pra ti, como um reflexo ao invés de uma projeção. O horror e beleza cósmica de se experimentar um espaço de tempo nesse universo doidera.
Voltei a jogar video games depois de muitos anos sem um console ou PC decente. Tenho um buraco de uns oito anos na minha trajetória como jogador, precisamente a era em que os jogos pularam para além do full hd e os fps chegam a bater mais de 200. Acabou que, mesmo quando jogo um Red Dead Redemption II (um jogo “velho”), fico embasbacado com a beleza e detalhismo do cenário todo. Passo longos períodos de tempo buscando mirantes, entrando em áreas verdes e sei lá, pescando. Esqueço que é um jogo violento. Que em algum momento alguém me fará usar alguma das meia dúzia de armas que carrego por default. Chega a ser uma surpresa, ter que atirar am alguém depois de passar uma hora subindo uma montanha. Mas: sem conflito, não tem jogo. Assistindo Avatar, senti o mesmo que sinto quando jogo games lindos: uma pena que toda essa beleza seja temporária porque, inevitavelmente, o pau vai comer. E é aí que Cameron mostra um pouco de descompasso. O filme inteiro é lindo, mas a ação quase sempre cai numa vibe Disney. Num mundo pós-John Wick/The Raid, a violência estética virou uma outra forma de arte. O conflito físico é um balé grotesco (e talvez até profundo). Dentro de toda a beleza estética, as capacidades técnicas e a pura força bruta de fazer um filme com centenas de simulações hiper-realistas de água do mar (“se liga em quanto render eu consigo bancar”), o filme brilha e empurra vários setores da indústria cinematográfica a um novo patamar (o trailer de um Ant Man que passou antes do filme parece um trabalho de YouTuber perto de Avatar). Algo que não acompanha essa evolução toda, é a sensibilidade da história em si, que chega a ser rasa – mesmo que os personagens não sejam (doidera que esses seres em 3D sejam tão familiares). Não se pode ter tudo, claramente. Mas que tu possas passar meia hora em Pandora antes do diabo saber que estás morto.
Taí mais uma medida de tempo fatal: esse é o quinto V/H/S. A antologia começou em 2012, com dois bons filmes iniciais, perdeu a mão com o terceiro filme (“Viral”) e meio que reconquistou o seu mojo com o “94” e agora com esse “99”. Na moral, me perdi nos filmes e reassisti o 94 por acidente antes de assistir o 99 porque achei que não tinha visto todo o filme (acabou que tinha assistido sim, mas o que é um filme repetido na vida do cara?). 99 é um filme menos inovador do que seu antecessores, com alguns segmentos (são cinco, acho) bastante dureza de assistir, coisa que não aconteceu muito com o filme anterior. Não ia nem escrever sobre, mas semanas se passaram e ainda penso no segmento final, onde um ritual satânico dá errado (ou certo demais) e envia dois broders pra uma versão do inferno que, pra quem cresceu jogando DOOM, é uma treta inconsolável. Só por isso, vale a resenha. Para iniciados, esse quinto V/H/S é nada especial, mas se algum segmento ficar na tua cabeça como o último ficou na minha, não tem elogio muito maior. Espero que voltem com a narrativa entre os segmentos no próximo.
Toda a raiva que existe em ti – toda raiva que couber: urgente, inclemente, pulsante como uma ferida aberta, triturando concreto, expelindo fumaça, envolta em gritaria e ordens e risadas e momentos microscópicos de euforia e tensão. O filme que não te larga em nenhum momento, porque é função dele te fazer de testemunha: essa é a fúria, dor, amor e tristeza de uma parcela imensa da sociedade em que tu vives. Realizando uma revolução na base do molotov e do dedo médio em riste, da dor que permeia todos os teus dias. Se vários filmes decidem abraçar uma ideia e te dar uma versão complexa e rebuscada dela, ATHENA nem finge querer ser nada além do que é: um grito longo e assustador que merece ser vivido. O tempo distorce, os atores se camuflam em massas e respirar vira algo que tu fazes junto com eles. Visualmente feroz, esse filme é tudo que tu precisas de vez em quando. Difícil ficar melhor que isso. Um filme que te dá tudo que uma obra de arte pode te dar. O resto é contigo.
Como um sonho que se torna mais e mais difícil de se acordar. Não que os outros filmes do Jordan Peele sejam ruins, mas sempre senti que faltava algo, ou: parecia que todo mundo via algo neles que eu não conseguia pescar. Nope não dá essa impressão. Pelo contrário, é um filme que exala autoconfiança – sem em nenhum momento ser pedante. As decisões cinematográficas funcionam, o elenco entrega, os efeitos especiais são modernos e requintados, a narrativa é deliciosa. É um filme de horror apenas no centro, pois expande e abraça outros temas com sinceridade. Interessante ver menções claras ou obtusas à Texas Chainsaw Massacre, Spielberg, Tarantino, Scorsese. É como se Peele quisesse amarrar as tradições cinematográficas hollywoodianas em uma só, porque pode (e quase consegue, apesar de o resultado ser mais do que referências bem costuradas: nasce um novo tipo de filme). Há uma perfeição aqui, rara e intransponível, fatalmente norte-americana (em certo nível bem parecido com o que acontece em Top Gun Maverick, outro filme da categoria blockbuster que toca a perfeição sem medo). Talvez seja até bravura, algo raro na indústria norte-americana nas últimas décadas. Nope é raro, demanda atenção e deixa questões fundamentais na cabeça do cara. Que filme.
Fazia um tempo desde que vi um filme recente com esse tipo de ritmo. Thriller de horror pegado, ancorado na excelente Rebecca Hall, talvez num dos ápices das suas capacidades como atriz: entregando um universo próprio de desconforto, raiva, cansaço e antipatia benevolente em várias cenas. Só mais assombrado do que a performance de Hall, talvez seja ouvir (pela também excelente atuação de Tim Roth) palavras que soam incrivelmente similares à coisas que eu mesmo disse em relacionamentos em algum momento da minha vida, por mais doloroso que seja admitir isso. Horror puro e verdadeiro é se ver refletido em personagens nojentos. Certa vez li que amadurecer é olhar para si anos atrás e sentir vergonha e desgosto por si mesmo. Não sei o quanto isso é verdade, ou se serve de métrica para alguma coisa. De qualquer forma, o tempo passa e algumas coisas permanecem, aguardando calmamente o seu momento para se desenrolarem ou explodirem. Nesse meio tempo, muita coisa pode acontecer. Uma vida inteira pode se desenvolver. O difícil mesmo é escapar de si mesmo.
“I often feel envious of others. The way they can immerse themselves in a world with so little effort. The way they can just believe.” narra Nathan em um dos episódios de The Rehearsal. Há uma conexão direta dessa série com o series finale de Nathan For You, que foi um lance de mais de uma hora em que Nathan basicamente apresentou o método criativo que ele agora chama de Rehearsal. O fator cringe diminui, a curiosidade por sentimentos e emoções começou a tomar lugar das preocupações de um show de comédia. É como se não fosse mais pela sketch, mas sim pela fascinação com o que poderia acontecer se algumas situações da vida pudessem ser planejadas, avaliadas, repetidas, alteradas e roteirizadas à gosto. Um Synecdoche, New York bruto em tempo real. As linhas entre realidade e ficção começam a interseccionar, aparentemente de forma orgânica – ou talvez essa incerteza seja o coração de the Rehearsal. Seja como for, Nathan Fielder encontrou algo único pra si. Em algum momento deixa de ser sobre o que é real ou não, parece não importar muito, pois criar algo assim é como viajar no tempo. Não tem trampo muito melhor do que esse.
Em algum momento de Prey me senti tipo esse gif do Jeff Goldbum. Não é complicado fazer um filme bom e divertido tipo esse, mesmo usando uma IP que permeia o imaginário popular por décadas. Corta pro básico: O Predador é um ser caçador que viaja o cosmos caçando troféus. Tempo é uma ilusão, então dá pra colocar ele na América do norte durante as primeiras décadas do genocídio colonial do continente. Coloca o predador caçando uns bichões tipo lobos, ursos brutos e tal, meio que se divertindo sozinho. E fatalmente ele cruza com uma das mais poderosas tribos nativas da região: os Comanche. Pronto, Predador versus Comanche. O resto é detalhe. Tu precisas de um cinegrafista que saiba usar a selva com esmero, atores confortáveis em seus papéis e claro, violência estética inclemente (com uma predileção por efeitos práticos, mesmo tendo que usar VFX em todos os animais – menos naquele cão muito parça da protagonista). Curti bastante que os Comanche quando falam inglês demonstram uma coolness quase impossível (que me fez lembrar de Scalped um pouco). Ótimo filme, que se junta à outros filmes diferentes que a franquia fez (Predators de 2010 é bem massa também). Essa fórmula de Prey serve pra qualquer IP de horror/ação que precise de um gás. Esperando com calma um Predador no Japão feudal, ou contra mercenários gregos de Alexandre.
Tenho lido as publicações de Donny Cates de forma meio atordoada. Acho que a primeira coisa que li foi Buzzkill (diversão demente), seguido da ótima temporada de Venom que ele comandou, daí Crossover tem sido uma das melhores hqs dos últimos anos e eu decidi que porra, esse bróder tem uma manha que não sei direito dizer o que é, uma facilidade em trabalhar temas complexos em linguagem bruta e sensível que se assemelha à Jason Aaron (pra ficar num exemplo contemporâneo, ou Morrisson para comparar com um dos mestres). Fui lendo outras coisas dele, como a excelente The Ghost Fleet (uma HQ de ação deliciosamente pré-adolescente das ideia) e finalmente cheguei no debut na Image: God Country. Que pancada. A história se desenrola feito uma canção épica de metal atmosférico, ora abrindo espaço para respirar, ora descendo a porrada sem limites. A cadência com que Cates desenvolve a sua história é quase anime/mangá em sua essência: ele trabalha crescendos inevitáveis sem deixar-se perder em uma cascata infindável de momentos, como muitos autores que trabalham os mesmos temas fazem. Cates vai de A até B de forma direta e quase simplória, entregando o que o povo quer. São os três acordes do punk, o dedilhado do black metal, a bateria do death. Coisas que funcionam porque são simples e possuem uma intenção clara. A beleza está em ser o que se parece.
Não sei bem como essa HQ veio parar na minha coleção, tampouco sei dizer porque comecei a lê-la; o nome do autor não me desperta nada e se alguém me perguntasse sobre o que era, meu melhor palpite seria algo com “talvez seja sobre viagra ou prozac?”. O bom de ser ignorante é que entrei nessa leitura apenas querendo ver qual é, mas o estilo de traços grossos e expressivos do suiço Frederik Peeters prendeu a minha atenção (aqueles olhos imenso de Cati, que inicialmente parecem querer assustar) e a história de desenrolou sem cerimônias, sobre um casal que se apaixona mas ela tem HIV. A HQ possui um típico senso de humor europeu da virada do século, autoconsciente, singelo mas pedante ao mesmo tempo e autobiográfico sem querer ser (mas tornando a autobiografia um dos temas da obra mesmo assim). De vez em quando é bom remexer a própria coleção de mídia e descobrir coisas como essa.
Tem dias que viram um desastre completo e tu consegues notar cada mudança sutil, que em incrementos te levam à ruína. Black Bird começa com um dia desses para James Keene (Taron Egerton, que demora um pouco pra preencher o espaço do personagem, mas quando engata, vira uma daquelas atuações quase míticas), um dealer de Chicago esperto demais para o próprio bem, que acaba engolindo uns dez anos de prisão. Para comutar sua sentença, uns federais oferecem um acordo do capeta: se realocar para uma prisão infernal no Missouri, onde o serial killer Larry Hall (Paul Walter Hauser, bicho completamente solto, aí sim mítico demais, como se alguém tivesse dito calmamente pra ele “agora sim pai, vai lá e seja doentio como tu quiser, o gol é teu”) se encontra e está prestes a ser solto na real pois nunca acharam algum corpo para colocar na conta dele. Fica a cargo de James extrair a localização de algum dos crimes de Larry. Doidera. Se não tivesse sido verdade (a minissérie é baseada no livro autobiográfico de Keene). Parte o coração ver o Ray Liotta também, que faz o pai ex-policial de Keene (talvez sua última atuação? que triste constatar isso ao assistir essa série “é essa a última vez que verei algo novo do Ray Liotta?”). Aliás, a história toda te parte o coração. Cortesia da direção estoica do belga Michaël R. Roskam (do excelente The Drop – que aliás é um dos últimos trampos do James Gandolfini, que tendência macabra, Roskam), que consegue dar peso à cenas que nós já vimos dezenas de vezes, sem se tratando de dramas e thrillers em prisões. Que nós jamais tenhamos dias tão ruins quanto os de James Keene.
Um filme acima da média para a Blumhouse, e abaixo da média para Scott Derrickson, que repete aqui a colaboração com Ethan Hawke (excelente como The Grabber, criando com pouco – quase nada – um personagem que imediatamente ganha espaço no imaginário de filmes de horror). Entrei nesse achando que seria algum horror de verdade, mas ganhei um thriller setentista baseado em um conto do Joe Hill que usa alguns clichês do pai Stephen King (semi-paranormalidade, bullies, jovens se metendo em merda) para contar uma história competente, mas que se distrai consigo mesma, seja nas atuações dureza do cast juvenil, seja na progressão tão linear da história que o interesse meio que some (acho que algumas cenas eu nem registrei direito o que tava acontecendo). Um Stranger Things mais adulto, ou um thriller de serial killer Disney. Hawke tentou (e quase consegue), mas além da máscara, não tem muito mais.
Numa sexta de sol e vento, em um atípico dia perfeito de verão holandês, o North Sea Jazz teve o seu primeiro dia (de três). Cheguei no final da tarde, sob sol excelente (o cara aprende a gostar de sol novamente) e esperei Marcus King tomar o palco principal do festival (coberto). Banda de barbudos, tocando alto e com categoria de quem sabe demais. Um baita show, daqueles que te faz pensar que esse broder tem só 26 anos e comanda uma banda assim. Não chegou a emocionar, mas todo o poder estava na distorção e em momentos como a versão de uns quinze minutos de Hoochie Coochie Man que eles mandaram. E eu achando que tinha me aposentado de festivais e shows grandes, de repente me senti confortável com aquele mar de gente, indecisa entre a dezena de palcos do festival, perambulando constantemente.
Caminhando entre os corredores limpos, refrigerados e cheios de stands de comida do centro de convenções Ahoy, demorei pra achar o palco menor onde Theo Crocker estava para começar a comandar a vibe. Todo mundo sentadinho (um festival onde todos os palcos tinham assentos, todos) e eu acabei ficando no melhor lugar, atrás dos monitores do projetista. Condiz com a minha condição de Senhor não ir muito pra frente do palco em shows hoje em dia, ficar ali pelas arestas, perto do pessoal da graxa, que sabe onde o som bom está batendo. Ver shows mais pelo som do que pelo que estão fazendo ali no palco (envelhecer é massa). A banda de Theo é outra banda absurda, com um baterista que do nada engatava um drum’n’bass analógico de forma aveludada, dando potência ao som suave, límpido e viajante que Theo extrai do seu trompete. Trilha sonora para se caminhar em um planeta estranho (ou para se caminhar em um país estranho). O som do trompete do Theo certamente é top cinco experiências que vivi nos últimos tempos.
Comi um sanduíche indonésio de porco na panela, um hotdog chamado RATDOG (um hotdog normal mas daí enrolado em bacon e passado na chapa), fritas com maionese, tomei água e coca quente (ah, festivais), fiquei uma meia hora procurando o palco onde BADBADNOTGOOD e quando finalmente entrei, dei sorte de subir uma escada lateral e me vi em um mezanino confortável e com som potente batendo; quando a banda começou mermão, o lugar inteiro tremeu. De longe a banda mais barulhenta que vi no dia, o BADBADNOTGOOD sem perdão soltou seu punk jazz sobre todos os presentes (expulsando grande parte do público jovem vibe chill, claramente não preparado para aquele atordoamento todo) e entregou um show que recalibra a cabeça do cara na base do barulho e no solo perfurante de sax. Uma projeção em 16mm sobre a banda forçava o palco a ficar escuro, o que parecia agradar os canadenses. O baterista sentava a mão como se estivesse tocando hardcore (com um groove aqui e ali, só pra contrariar) e o baixista fez uns lances que me fez pensar se era de propósito ou o som do palco não tava sabendo processar o que ele queria fazer. Em algum momento, alguém da banda falou ao microfone (na escuridão não dava pra ver quem fazia o quê) que estavam muito felizes em estarem ali naquela noite, tocando em um dia cheio de artistas que eles admiram e que tudo que gostariam que a gente experimentasse fosse amor, compaixão e beleza atrás da música deles. Anos atrás eu mentalmente soltaria um “sae dae mano” e nem prestaria muito atenção. Mas envelhecer é massa, concordei, apreciei e me senti um sortudo também.
Tive um chefe em Frankfurt que dizia que Barbeiros de sucesso e renome geralmente contraiam uma condição que ele apenas chamava de A Doença. Quanto mais sucesso comercial acontecia e sua capacidade técnica evoluía, pior a pessoa se tornava como companheiro de trabalho ou como chefe. A Doença os tornava antipáticos, combativos, obcecados, narcisistas. Ele sempre fazia um adendo: é bem comum A Doença atacar chefs e cozinheiros também (talvez eles tenham sido os originários da condição toda, pensando aqui). The Bear é sobre A Doença e como ela contamina a vida inteira de quem a contrai, mesmo que intencionalmente. Usando um restaurante familiar em Chicago como centro do universo (curti que demora alguns episódios para se entender como o restaurante é por “fora”, pois tudo acontece na cozinha e nas portas dos fundos), a série se desenrola após o antigo dono cometer suicídio e deixar como herança o restaurante para o seu irmão mais novo, um cozinheiro prodígio que trabalhava como Chef de Cuisine no melhor restaurante do mundo em NYC (uma espécie de French Laundry futurista). Voltar para casa é sempre uma treta, ainda mais em condições como essas. Em uma temporada cheia de episódios engraçados (destaque para Oliver Platt roubando várias cenas), tristes e tensos, a série torna-se sobre luto, nerds de comida, tradições, laços familiares (de sangue ou de vida), sobre como encontrar espaço em comum entre pessoas que parecem não ter nada a ver uma com as outras – e sobre como muitos dos que acabam por adoecer sabem muito bem que estão adoecendo. Mas a cura é parar de fazer justamente a atividade que os define naquele momento. Ao falar sobre a sua experiência em NYC, o protagonista diz que vomitava todos os dias antes de começar um turno, dormia mal, teve o estômago completamente zoado e trabalhava para um sadista inclemente que lhe deixou com PTSD. Mas: era o melhor restaurante do mundo e era ele que comandava a cozinha, encontrando todo dia um novo plateau de excelência. O preço para fazer algo assim como profissão é alto, muitas vezes impossível de se pagar por completo e a conta chega de uma forma ou de outra: ou a mente quebra, ou o corpo. Ou os dois. É uma questão de tempo, apenas. E muita gente, quase todo mundo, não vai entender muito bem o que tu estás fazendo contigo mesmo. O alarme vai tocar mais uma vez e tu vais ter que levantar e começar um turno que sabes que irá consumir alguns porcentos importantes da tua existência. Mas tu não consegues parar. Trabalhar desse jeito é viciante e consome muito mais do que aquelas horas de trabalho. Emocionante, The Bear é uma série que pega o romantismo Bourdainiano sobre cozinhas e esculpe cenas que parecem ser sobre coisas simples, mas que importam muito mais do que parece ser possível.
Comecei esse filme sem saber muito sobre, imaginando que seria algum filme de máfia pós-guerra estiloso (“ah parece ser sobre um alfaite que trampa pra máfia, massa, vamo ae”). Quase acertei, mas não sabia que também se passa todo em um lugar só. O contraste constante de modos e jeito de falar de um britânico em Chicago acabou por sustentar o meu interesse durante o filme todo. Observar Mark Rylance trabalhando nesse filme é demais. Utiliza o pouco que tem com esmero e precisão, sustentando com cuidado o ritmo de cenas que quase (quase) perdem o gás quando o foco sai muito dele. A diferença que uma milhagem alta faz.
A doidera de existir. Não fiquei surpreso ao ver o nome dos irmão Russo nos créditos. É uma espécie de Avengers da A24: filtrando um conto meio Siddhartha acidental via comédias da década de 80, com maximalismo violento década de 00 e com questões de identidade típicas dos anos 10. Um filme que, fatalmente, só poderia existir nessa década pirada que estamos vivendo nesses anos 20. Na penúltima temporada de The Expanse, um dos personagens professa que a única escolha real que temos é ir ou ficar. No decorrer da vida, ir ou ficar é a decisão suprema, que se desmembra em infinitas decisões menores. Mas tudo começa ali, no segurar/soltar. O material de que a existência é feita está todo compreendido entre o ato de ficar ou ir. Surpreso, me vi soltando lágrimas com momentos de Everything Everywhere All at Once. Michelle Yeoh (eterna crush desde sei lá, Police Story 3, pelo menos), uma mestre em plena forma, encarna o filme de uma forma que a gravidade do seu trampo puxa todo o resto do elenco junto. Um filme esquisito, clichê e não muito inovador – mas mesmo assim forte pra caralho. Como a vida.
Um dos primeiros mangás que li foi Eden, do Hiroki Endo. Publicado pela JBC no Brasil, lembro que um amigo da escola comprou a primeira edição e ao folhear eu sabia que tinha que ler/acompanhar aquilo (sem contar que era a chance de entrar em uma publicação bem no começo, pois a maioria dos mangás na banca já estavam bem adiantados e ao tentar entrar em algum desses títulos eu ficava mais confuso do que empolgado). Por anos durante o ensino médio, Eden foi minha companhia mensal, até que meio que pararam de publicar (demorei anos a terminar a leitura, já depois da faculdade). Desde então, acho que já reli umas três vezes a obra toda. Virou um mangá essencial pra mim. Um daqueles lances que tu sabes que não é O Melhor De Todos Os Tempos, mas é importante pra ti. Muito dos meus gostos de sci-fi, mangá e anime, foi moldado por Eden. Quando comecei a ler All-Rounder Meguru confesso que nem notei o nome do Hiroki Endo ali, mas após alguns capítulos, o senso de humor, o estilo gráfico e o nerdismo detalhista pareceu muito familiar. Porra, é do Hiroki Endo! Li o mangá todo em uns dias, viciado no estilo “manual de como lutar MMA” que Endo aplica nos capítulos (aprendi fundamentos importantes de grappling durante a leitura, na moral). Os detalhes de como funciona uma carreira amadora de MMA no Japão são excelentes, explorando além disso temas como aspirações iniciais da vida adulta, amizades versus tempo, limitações pessoais e o significado de ser “forte” – que varia incrivelmente de pessoa pra pessoa, mesmo dentro de um microcosmo como lutas amadoras de MMA. As cenas de luta são cinéticas e bem calibradas, pontuando o mangá sem entrar numas de uma luta durar trezentas páginas. Conforme o final vai se anunciando, os personagens começam a encontrar definições próprias para os temas levantados. Feliz pela leitura, senti falta de tudo quando All-Rounder Meguru terminou. Assim como me senti quando terminei Eden pela primeira vez. Que privilégio, ter momentos distintos da minha vida pontuados pela arte de Hiroki Endo.
Quase doze anos após seu lançamento, terminei de ler Cachalote. Essa hq sempre esteve perto de mim. Acho que cheguei a comprá-la umas duas ou três vezes (não lembro mais se pra mim, ou pra alguém). O lançamento dela na Mercearia foi num dia em que passei ali na frente e reparei muvuca. Como um filme que se tem uma cópia física em casa que nunca terminei de assistir, Cachalote não me perseguia, mas estava sempre ali. Eu mesmo esquecia dela e o tempo passava, lia uns pedaços e largava por algum motivo (vida). Dia desses, conversando sobre artes marciais com um cliente, ele me contava sobre sua segunda luta amadora de kickboxe enquanto eu contava que estava me preparando para a minha primeira competição de jiu-jitsu, e ele me disse que a melhor parte de competir, pra ele, é que quando a luta começa, tudo torna-se brutalmente simples: apenas marrete o oponente. Um momento só teu. Cachalote é, de certa forma, centrada em vários momentos assim. Uma coleção de fragmentos que parecem não conversar entre si, mas que carregam tudo que importa nesse lance de estar vivo. Valeu Galera, valeu Coutinho.
Acho que foi ano passado (os anos da pandemia misturaram-se uns com os outros na minha cabeça) que reassisti The Wire pela terceira vez, ainda sentindo fortemente os efeitos do monumento em forma de série de TV que é a imortal, suprema, incansável e bela The Wire. Sempre pensei, se durante os anos em que ela passava semanalmente, as pessoas que a assistiam tinham noção do que estava acontecendo, que aquilo ali era provavelmente o apogeu do universo de série criminal dentro do formato. Assistindo We Own This City, tenho a resposta: sim, é óbvio que dá pra sacar que algo de especial está acontecendo. Em We Own This City, David Simon retorna à Baltimore, dessa vez usando um livro-reportagem sobre uma treta imensa de corrupção e crime dentro da polícia da cidade como base. Reinaldo Marcus Green dirige os episódios e o cast é uma mistura de amados atores que estiveram em The Wire (e Treme e The Deuce) e outros estreantes que claramente abraçam o material com afinco. Mágica e técnica, realismo e ficção em um equilíbrio possível somente dentro desse mundo que Simon é tão fluente. Não fica muito melhor do que isso.
Espião, via de regra, não chega a se aposentar. Ou desaparece, morre em ação ou vira burocrata dentro do governo. Jackson Lamb escolheu/tentou virar um burocrata falido, limitado, chefe de uma divisão horrível do MI5 após evitar morrer como um espião que presenciou os anos pré-muro e pós. Seu departamento não faz nada além de engrossar o caldo da “inteligência” britânica. Gary Oldman infalível deita como Lamb, controlando os episódios com experiência e cadência. A série desenrola-se como uma improvável mistura de The Office e Killing Eve, como se tivesse sido escrito por um Carré que curte George Carlin; entre momentos engraçados, trágicos e tensos, Slow Horses mostra-se como uma série que, assim como Jackson Lamb, talha um espaço próprio para si em um mundo lotado de séries e shows e toda sorte de narrativas. Feito admirável.
Danny McBride como o campeão atual do humor vindo dos EUA: escreve, dirige e atua de forma excelente em The Righteous Gemstones. Essa segunda temporada é um dos ápices de sua carreira, certamente. Tudo funciona, os personagens são deliciosamente complexos, engraçados até o talo (e um pouco menos insuportáveis), as cenas de ação são espetaculares e tem Walton Goggins entregando a performance de uma vida em cada frame. Demorei para dar play nessa temporada e quando vi já tinha atravessado todos os episódios. Os roteiros são metralhadoras de piadas e referências constantes, não deixando o ritmo afrouxar quase nunca. Diferente da primeira temporada, que consegue ter momentos antipáticos que estragam um pouco a diversão, essa segunda encontra um equilíbrio e esmerilha sem perdão. A cena em em que Danny fala “The whole church sucking my wife’s dick” requer reconhecimento como um patrimônio cultural global imediato. Cumpra-se.
O cara percebe que nem conhece o próprio país. Primeiro pois o jeito que os polícia falam nesse documentário é algo de especial: dos civis, aos estaduais e federais, aos agentes especiais e peritos, cada um usa a língua portuguesa de uma forma específica e comumente fatal. As regionalidades são achatadas quase sempre, mas ainda presentes ali, de forma até divertida, quase fascinante (descontado a galera do jurídico, que nossa senhora como é terrível ouvir grande parte do que falam). Tudo bem que isso só pode ser interessante pra mim por estar há muitos anos não convivendo com essa língua. Segundo que como é treta o br, né. Aqueles momentos pós-prisão, onde polícia e suspeitos trocam ideia livremente, é coisa que não existe, velho. Não dá pra escrever essa ficção. Os caras sendo preso em Porto Alegre, jogados na calçada garroteados – ou os caras posando ao lado de agentes especiais em algum rancho no sertão do Ceará, fazendo aquela cara de “putz fui preso”. Bruto demais. A treta é infinita. O caso em si é um clássico já (feliz em ver o Roger aparecendo, sendo reconhecido pelo seu excelente livro Toupeira), e não apresenta nada de novo além de uma narrativa mais amarrada. O documentário realmente brilha em mostrar as camadas de polícia, criminosos e toda sorte de envolvidos que se conectam em algum momento ao caso, dando breves, mas importantes, relampejos de como se forma a o br, esse país imenso e impossível.
Luto como portal para alucinações, sonambulismo e uma vida solitária alienante. Os filmes do David Bruckner são excelentes construções de monstros de filme de horror, e nesse ele abusa de uma espécie de trompe-l’oeil digital para aos poucos nos apresentar uma presença maligna brutal. Mas há outras camadas de treta, sutis e sem muita resolução (a porta para “é tudo uma alucinação apenas” é aberta algumas vezes). Rebeca Hall está excelente como uma pessoa naturalmente antipática e irritante, dureza de simpatizar mas ao mesmo tempo interessante. Luto é um troço complicado.
Usando as memórias do repórter Jake Adelstein, um broder do Missouri que se tornou o primeiro gaijin a trabalhar num dos maiores (senão o maior na época) jornais do Japão (senão do mundo) como base, Tokyo Vice é basicamente feito para patos como eu: Michael Mann dirige o primeiro episódio, a Tóquio é aquela em plena ressaca pós-bonança dos 80s e tem o Ken Watanabe. Porra, é meio covardia até. Tem uma cena do Jake andando pela imensa redação do jornal que é um pequeno delírio nerd. Tem a presença inescapável de uma Yakuza altamente organizada e ritualística. Jake passa os seus dias estudando japonês e recortando reportagens de jornais, levando uma surra em Aikido, mandando ver num rango de Izakaya e sendo no geral um gaijin em total imersão numa cidade infinita. Bagulho bom.
De zero à trezentos quilômetros por hora em alguns minutos. Um brutal espetáculo sadista de desgraceira tropical apocalíptica em pura forma gore. Um grand guignol vindo direto de Taiwan, que me dá aquela sensação massa de que há horror podre de alta qualidade a ser descoberto em vários países (tipo aquela sensação que o coreano Train To Busan deu, ou o japonês One Cut Of The Dead). Talvez seja o mais próximo que Crossed de Garth Ennis chegará a virar filme. Algumas cenas me fizeram dar aquela característica viradinha de cara, coisa que não fazia há muito. Ah, nada como ser fã de horror. Várias cenas são esteticamente lindas e repulsivas ao mesmo tempo, em uma espécie de balanço improvável entre técnica e desregramento grindcore.
Uma doidera. Tem John C. Reilly em completas chamas ostentando um comb over criminoso, narração em off, quebra de quarta parede, inserts documentais, animação, gráficos pipocando na tela, cenas que parecem filmadas em câmera 8mm, outras em um digital-analógico meio torto, uma tonelada de personagens e atores que parece não terminar (não sabia nada sobre essa série quando comecei a assistir, daí pá Adrien Brody, pá Jason Segel etc). Quando saquei que é produção do Adam McKay, ficou meio óbvio até. Tenho me divertido pra cacete com os episódios dessa série. É um pacote inesgotável de piadas, referências e personagens encantadores. Puro suco de EUA nos 80s. Talvez o efeito seja mais intenso pois não sei muito sobre essas pessoas e esse período do basquete, só meio por cima. Ser jogado no meio das engrenagens daquela época dessa forma é um prazer.