God Country, 2018.

Tenho lido as publicações de Donny Cates de forma meio atordoada. Acho que a primeira coisa que li foi Buzzkill (diversão demente), seguido da ótima temporada de Venom que ele comandou, daí Crossover tem sido uma das melhores hqs dos últimos anos e eu decidi que porra, esse bróder tem uma manha que não sei direito dizer o que é, uma facilidade em trabalhar temas complexos em linguagem bruta e sensível que se assemelha à Jason Aaron (pra ficar num exemplo contemporâneo, ou Morrisson para comparar com um dos mestres). Fui lendo outras coisas dele, como a excelente The Ghost Fleet (uma HQ de ação deliciosamente pré-adolescente das ideia) e finalmente cheguei no debut na Image: God Country. Que pancada. A história se desenrola feito uma canção épica de metal atmosférico, ora abrindo espaço para respirar, ora descendo a porrada sem limites. A cadência com que Cates desenvolve a sua história é quase anime/mangá em sua essência: ele trabalha crescendos inevitáveis sem deixar-se perder em uma cascata infindável de momentos, como muitos autores que trabalham os mesmos temas fazem. Cates vai de A até B de forma direta e quase simplória, entregando o que o povo quer. São os três acordes do punk, o dedilhado do black metal, a bateria do death. Coisas que funcionam porque são simples e possuem uma intenção clara. A beleza está em ser o que se parece.

Pílulas Azuis AKA Pilules Bleues, 2001.

Não sei bem como essa HQ veio parar na minha coleção, tampouco sei dizer porque comecei a lê-la; o nome do autor não me desperta nada e se alguém me perguntasse sobre o que era, meu melhor palpite seria algo com “talvez seja sobre viagra ou prozac?”. O bom de ser ignorante é que entrei nessa leitura apenas querendo ver qual é, mas o estilo de traços grossos e expressivos do suiço Frederik Peeters prendeu a minha atenção (aqueles olhos imenso de Cati, que inicialmente parecem querer assustar) e a história de desenrolou sem cerimônias, sobre um casal que se apaixona mas ela tem HIV. A HQ possui um típico senso de humor europeu da virada do século, autoconsciente, singelo mas pedante ao mesmo tempo e autobiográfico sem querer ser (mas tornando a autobiografia um dos temas da obra mesmo assim). De vez em quando é bom remexer a própria coleção de mídia e descobrir coisas como essa.

All-Rounder Meguru.

Um dos primeiros mangás que li foi Eden, do Hiroki Endo. Publicado pela JBC no Brasil, lembro que um amigo da escola comprou a primeira edição e ao folhear eu sabia que tinha que ler/acompanhar aquilo (sem contar que era a chance de entrar em uma publicação bem no começo, pois a maioria dos mangás na banca já estavam bem adiantados e ao tentar entrar em algum desses títulos eu ficava mais confuso do que empolgado). Por anos durante o ensino médio, Eden foi minha companhia mensal, até que meio que pararam de publicar (demorei anos a terminar a leitura, já depois da faculdade). Desde então, acho que já reli umas três vezes a obra toda. Virou um mangá essencial pra mim. Um daqueles lances que tu sabes que não é O Melhor De Todos Os Tempos, mas é importante pra ti. Muito dos meus gostos de sci-fi, mangá e anime, foi moldado por Eden. Quando comecei a ler All-Rounder Meguru confesso que nem notei o nome do Hiroki Endo ali, mas após alguns capítulos, o senso de humor, o estilo gráfico e o nerdismo detalhista pareceu muito familiar. Porra, é do Hiroki Endo! Li o mangá todo em uns dias, viciado no estilo “manual de como lutar MMA” que Endo aplica nos capítulos (aprendi fundamentos importantes de grappling durante a leitura, na moral). Os detalhes de como funciona uma carreira amadora de MMA no Japão são excelentes, explorando além disso temas como aspirações iniciais da vida adulta, amizades versus tempo, limitações pessoais e o significado de ser “forte” – que varia incrivelmente de pessoa pra pessoa, mesmo dentro de um microcosmo como lutas amadoras de MMA. As cenas de luta são cinéticas e bem calibradas, pontuando o mangá sem entrar numas de uma luta durar trezentas páginas. Conforme o final vai se anunciando, os personagens começam a encontrar definições próprias para os temas levantados. Feliz pela leitura, senti falta de tudo quando All-Rounder Meguru terminou. Assim como me senti quando terminei Eden pela primeira vez. Que privilégio, ter momentos distintos da minha vida pontuados pela arte de Hiroki Endo.

Cachalote, 2010.

Quase doze anos após seu lançamento, terminei de ler Cachalote. Essa hq sempre esteve perto de mim. Acho que cheguei a comprá-la umas duas ou três vezes (não lembro mais se pra mim, ou pra alguém). O lançamento dela na Mercearia foi num dia em que passei ali na frente e reparei muvuca. Como um filme que se tem uma cópia física em casa que nunca terminei de assistir, Cachalote não me perseguia, mas estava sempre ali. Eu mesmo esquecia dela e o tempo passava, lia uns pedaços e largava por algum motivo (vida). Dia desses, conversando sobre artes marciais com um cliente, ele me contava sobre sua segunda luta amadora de kickboxe enquanto eu contava que estava me preparando para a minha primeira competição de jiu-jitsu, e ele me disse que a melhor parte de competir, pra ele, é que quando a luta começa, tudo torna-se brutalmente simples: apenas marrete o oponente. Um momento só teu. Cachalote é, de certa forma, centrada em vários momentos assim. Uma coleção de fragmentos que parecem não conversar entre si, mas que carregam tudo que importa nesse lance de estar vivo. Valeu Galera, valeu Coutinho.

Loose Ends.

Nas notas finais da edição de Loose Ends que li, o roteirista Jason Latour conta que essa HQ quase matou os seus criadores. Por uma década, eles tentaram fazer algo que muitos consideravam equivocado, impossível ou simplesmente errado. Ainda bem que essa luta foi vencida pelos criadores, pois Loose Ends preenche um lugar especial nas HQs modernas. A composição de páginas, o ritmo fragmentado e constante, as cores que explodem sem perdão. É um trabalho minucioso, impressionante e essencial em seu próprio mérito. Em alguns momentos, fica a impressão “nem sabia que dava pra fazer hq assim”. Sinal de que estás lendo algo que possui a sua própria verdade.

A Drifting Life.

Um mangá semi-autobiográfico de quase novecentas páginas. Comecei a ler A Drifting Life por pura curiosidade. Não demorou muito para ver que tinha algo mais ali (por pura ignorância minha, não sabia nada sobre o autor, um influente contemporâneo de Tezuka). A história de Yoshihiro Tatsumi é a de um artista que começa ainda adolescente, desenhando mangá em um Japão pós-guerra. Tatsumi começa a criar pois percebe que: pode e consegue. Um hobby de estudante do ensino médio, que vive em um país devastado. É algo que inicialmente serve para lhe render algum trocado e algo para fazer. Até começar a virar algo que pode lhe sustentar. A partir do momento em que Tatsumi decide não ir para a faculdade e investir em sua carreira de autor, o livro começa a expandir, tratando sobre o ato de criar. Mesmo que as condições melhorem, ainda é preciso sentar e fazer o que precisa ser feito. Não é porque ele consegue o que quer (ir trabalhar em Tóquio) que seu trabalho melhora. Não é porque conhece Tezuka em pessoa, que conseguirá fazer um trabalho naquele nível. Quando tudo dá errado para Tatsumi, o que lhe resta é o som da cidade entrando pela sua janela, os cinemas que ele incessantemente frequenta e suas páginas de mangá a criar. Há muito em A Drifting Life que chama atenção, e, mesmo que eu não conheça nada de mangá dessa época (maioria do que li começa na década de 90), consegui perceber a influência que Tatsumi teve. Acho que sem autores como ele, não haveriam os mangá que cresci lendo.

2021: EVERYBODY HAD A HARD YEAR

(hqs)

The Many Deaths of Laila Starr

  • memento mori. o tipo de coisa que o cara precisa de vez em quando.

The Nice House On The Lake

  • como fazer o fim do mundo.

Restless

  • mestres em atividade. um dos privilégios de se estar aqui.

That Texas Blood

  • assim se nasce uma lenda.

Crossover

  • pequenos prazeres de ser nerdola.

Red Room

  • incansável Piskor. obrigado por tudo.

Ice Cream Man

  • experimentação constante e inclemente.

A Righteous Thirst For Vengeance

  • e de repente tudo faz sentido.

Fear Case

  • as perguntas que importam.

Monsters

  • toma aí, disse o mestre. te vira.

The Department of Truth

  • é como poder ver algo que está logo ali, pronto pra ser desvendado. uma baita série.

The Nice House on the Lake, #01-06.

Um Blockbuster com B maiúsculo, que quer ser um blockbuster e possui todos os elementos no lugar certo. Uma belezinha de leitura, com aquele visual de HQs indie da década 00, mas atualizado, certeiro, refinado. As cores de Jordie não parecem encontrar limites em cima da arte de Bueno. E o roteiro de Tynion é deliciosamente obtuso quando quer. Acho que a última vez que me senti assim lendo uma HQ foi com aquela época do Scott Snyder e o Greg Capullo fazendo o Batman. Tu sabes que tens em mãos algo grande, pretensioso e bonito. Como todo blockbuster deve ser.

The Many Deaths Of Laila Starr, #01-05.

Um esculacho. Difícil ser original em HQs desse jeito. Mas essa consegue. Porra, tem uma edição inteira que é narrada por um cigarro. Um abraço em forma de história em quadrinhos. Arte delirantemente linda, com uma urgência que não te esgota. Ser jovem, adulto e envelhecer. Tudo ao mesmo tempo agora.

Desolation, 2021.

Uma surpresa de leitura. Na ressaca de um término de relacionamento, o protagonista resolve se meter numa viagem de alguns meses até um arquipélago na Antártica. Normal. O que se desenrola é ora melancólico, ora engraçado. Alguns temas são urgentes, outros nem tanto. A sensação de que não existe mais nada intocado nesse nosso planeta.